19/10/2010

Leonor do Massapez

A tia Leonor do Massapez era uma figura de mulher sabedora da vida e sabedora dos meandros do comércio agrícola. Era vê-la na época das canas a contratar pessoal, a controlar os molhos de cana e o horário de carga dos velhos Fargos do tio Federico. Nunca casou. Era uma espécie de matriarca.
Vivia, sozinha numa casa térrea, afastada da rocha por um corte vertical feito no salão que suportava o negro basalto, onde uma cabra se recolhia numa furna sobranceira ao telhado feito de telha branca de cimento em cujos cantos adejavam petrificadas pombinhas. Ao lado cacarejavam as galinhas pretas e de boa postura e reinavam uns galos bodiões de crista altiva, cujo canto despicado se estendia largo pelas manhãs.
Frente à casa cresciam goiabeiras, nespereiras, araçaleiros e um mangueiro que ficava amarelinho de frutos suculentos. O terreiro era calcetado de pedra lascada e fronteado por blocos de pedra que serviam de assento ou de apoio a enormes vasos com orquídeas. Junto às paredes rebocadas da casa cresciam algumas begonaceas conhecidas por corações. As portas de madeira maciça estavam pintadas de verde e duas janelinhas serviam de entrada à luz. O quarto compunha-se de uma cama de solteira suportada por um catre de ferro. Uma mala, a um canto servia de arrecadação dos bens mais escassos e, nos seus escaninhos, ela guardava documentos e algum dinheiro. Um vestuário castanho ficava noutro canto, e ao lado da porta estava a bacia da higiene na sua armação típica de ferro, em cujo varão superior pendia uma toalha branca de linho.
No outro quarto, mais pequeno, guardava os pequenos barris de vinho, algumas batatas, milho em maçarocas, trigo e o feijão. Num canto, bem arrumadas, estavam as alfaias da agricultura: enxadas, podoas, foices, o podão da vinha, cajados para aliviar os pesados molhos de cana, apertados por negros arcos, cabos de nespereira para as enxadas que cavam o pegajoso massapez....
No fim do verão o meu avô descia das Eiras, bem cedo, passava pelo Pardieiro, onde, geralmente, encontrava o Ferreira ou outro agricultor, depois subia ao Arrudal, atravessava o caminho das Levadas, calcetado toscamente nessa época, e puxava dum cigarro no Cabeço, junto à casa do Coelho, seu amigo de longa data.
Dali já se via a casa da Tia Leonor. Os araçais esperavam, gordos e amarelos nas árvores, e até as uvas americanas que sombreavam o terreiro de mil fantasmas derretiam-se em cheiro. A tia já tinha figos passados nos açafates de cana, pendurados na cozinha de terra batida, afastados do lume que encardia a parede áspera do fundo por onde se escava o fumo.
O avô descia calmo e sabedor dos atalhos, pelos lanços ladeados de canas jovens, precisando de desfolha, depois serpenteava pela lavadinha, e passava junto do poço do Tasqueira, sobre o qual uma romãzeira, prenhe de verdes frutos, se oferecia ao abismo. Uma amendoeira dava as boas vindas à casa da tia por aquelas bandas. Uma breve cancela se abria e logo se fechava, não fossem as galinhas chocadeiras desaparecerem com os pintainhos.
Eu chegava acompanhado do avô e logo beijava a mão da tia-avó e dizia:
-Tia, sua bênção.
Ela sorria e respondia com a sabedoria da vida:
-Que Deus te abençoe e te faça melhor que a tia.
Depois a vida mudou e ela foi viver para a vila. Na rua das Rosas.
Ali tinha mais tempo para as suas leituras e pode viver a sua reforma com tranquilidade. Por detrás dos seus grossos óculos vivia sempre um sorriso de criança. esse era o seu maior segredo para cativar os meninos, ao qual se adicionava um rebuçado de funcho. Desse tempo recordo a sua voz rouca e pausada, o cheiros das beberas passadas, e dos peixinhos vermelhos que nadam num pequeno pocinho, como eu nadava despreocupado e crescia.
A casa ainda lá está, e nas suas paredes, já sem cor, moram as minhas memórias de criança.

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7 comentários:

  1. Como é doce esse recordar, esse lembrar de coisas, pessoas importantes da infância, e mais ao som da voz de Max, esse artista grande sendo médio, grande talento, ironia, saber... vim conhecer seu cantinho e me apaixonei, vou voltar acredite.

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  2. Parece que te vejo quando criança, ou melhor, te revejo. Revejo também a casa da minha avó e tudo o que nela há da minha vida. A casa em si já não existe. Parabéns********
    Um beijo, meu amigo.

    Em algum lugar acima do arco-íris

    Lá no alto,

    Há uma terra, de que certa vez ouvi falar

    Numa canção de ninar.

    Em algum lugar acima do arco-íris

    Os céus são azuis,

    E os sonhos que se ousam sonhar

    Se realizam de verdade.

    Um dia pedirei a uma estrela

    Que me desperte longe das nuvens

    Atrás de mim.

    Onde os problemas se derretem

    Como pastilhas de limão

    Longe, acima do topo das chaminés

    É lá que tu me vais encontrar.

    Em algum lugar acima do arco-íris

    Os pássaros azuis estão a voar.

    Os pássaros voam acima do arco-íris.

    Por que, ah, por que não posso eu voar?

    Se os pássaros azuis voam felizes

    Acima do arco-íris

    Por que, ah, por que não posso eu voar?

    Tradução interventiva da Renata

    Renata

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  3. Posso usar este ou outro texto nas aulas? Conheço poucos com descrições tão ricas (espaços e personagens).

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  4. Podes usar os que quiseres, desde que corrijas as imprecisões.

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  5. Vamos Sonhar, Jordas?

    Conosco há sempre uma força invisível, um anjo que nos orienta, nos impele constantemente para frente*


    Tagore





    Não me procures

    É só um momento


    Eu só me perco


    No espaço e no tempo




    Acalentada pelo lume de Deus


    Com a minha pele multicores


    Eu danço giro em meio às flores


    Emitem ondas de luz o corpo meu



    Acima das nuvens


    Além das tormentas


    Sempre sinto a estranha


    Necessidade de sonhar



    Leva-me ao Paraíso


    No meio das árvores


    Aqui não há espinhos


    Nas flores e nas rosas



    Lá frutas impenetráveis


    Tapetes verdinhos


    Esse canto de Paraíso existe


    Eu tenho a certeza.


    By Renata Cordeiro

    Agora, vou sair pra andar.
    Mais um beijinho

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  6. Vim trazer aquela canção nossa e desejar-lhe um Bom Domingo, meu amigo.
    Beijinhos



    Amigos para sempre**


    Eu não tenho nada pra dizer

    Você parece no momento até saber

    Como, quanto estou sofrendo



    Venha ver pelos olhos meus

    A emoção que sinto em estar aqui

    Seguir seu coração e amando



    Amigos para sempre

    É o que nós iremos ser

    Na primavera

    Ou em qualquer das estações

    Nas horas tristes

    Nos momentos de prazer

    Amigos para sempre



    Você pode estar longe

    Muito longe sim

    Mas por amá-lo

    Sinto você perto de mim

    E o meu coração contente



    Não nos perderemos

    Não o esquecerei

    Você é minha vida

    Tudo que sonhei

    Ligue-me qualquer dia



    Amigos para sempre

    É o que nós iremos ser

    Na primavera

    Ou em qualquer das estações

    Nas horas tristes

    Nos momentos de prazer

    Amigos para sempre



    Amigos para sempre...


    Vários compositores, remexidos há um tempinho pela Renata Cordeiro.

    Da Rê para o Jordas.

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