O sol escalda de oiro as copas verdes das grandes árvores e derrama-se pela rede das folhas sobre o relvado do jardim. Os carros passam em surdina monótona. Algumas pessoas espreitam os repuxos do Parque de Santa Catarina, onde três alvos cisnes, como armada de cruzadores, rasgam as tranquilas e verdes águas. Mais abaixo, debruçados sobre a baía, turistas sorriem ao esplendor do anfiteatro da cidade, enquanto alguns, ainda jovens adultos se embebedam da enormidade do paquete atracado na Pontinha, sobre a sombra de uma pimenteira, enquanto destilam pelas palavras o desarrumo de um vinho menos nobre. Sobre as pernas de um deles dorme uma mulher. Quadro triste, duma tarde de sábado.
Os turistas passam, olham e, como se as pessoas não fossem importantes, descarregam a energia do indicador nas máquinas que roubam a imagem à capela, a Colombo, e à paisagem.
Atravesso o jardim, pelo passeio mais abaixo, aquele que se pode acompanhar a linha da doca e as obras em curso. Máquinas esventram a ribeira dos inertes trazidos pela chuva de quarta-feira, camiões percorrem a avenida e aliviam-se mais a oriente no desaterro. Mesmo à minha frente, ali onde um cacto enorme se ergue de braços ao céu, outro grupo de imigrantes do Leste, possivelmente desempregados, ou cujos salários lhes não foram pagos, afogam a saudade da família ou o infortúnio nos goles de um vinho tinto zurrapa e as gargalhadas são o canto do triste desespero da distância.
A tarde tornou-se uma ruína.
Saí do jardim que em tempos foi das angústias. Pouco a pouco, começa a deixar de ser dos namorados e a recuperar o seu destino?
À saída do parque observo o rosa que coroa um eucalipto exótico. As flores reúnem-se como filigranas e, pendentes, lembram brincos de donzelas.
A Avenida do Infante está calma. Poucas pessoas, poucos carros, nem parece cidade.
Atravesso quando o semáforo fica verde. No outro lado da artéria abre-se um portão sombreado pelos braços de dois ve
lhos dragoeiros, preso à cantaria rija por fortes gonzos de metal. À direita uma sineta esverdeada observa quem entra no Hospício. Subindo os largos degraus, encontramos um jardim tratado, com relvas verdes e aparadas, os troncos velhos servem de ornamento, onde crescem novas plantas ornamentais. Os canteiros estão cavados e florescem rosas rubras. Uma das velhas palmeiras foi atacada pelos escaravelhos e as suas jovens e tenras folhas precipitaram-se sobre o passeio de calhau rolado. a enorme acácia veste-se dum verde claro e contrasta com o verde mais escuro dos tis e loureiros. Uma palmeira esguia é responsável pela guarda do antigo jardim que se abre para a entrada principal do edifício. Quando entrei a porta de madeira estava aberta, mas agora que chego ao enorme espaço limitado a oriente e ocidente por um conjunto de quatro colunas, encontra-se fechada. Ao lado direito, uma idosa parece contar os minutos da tarde e as sombras que se desenham à sua frente. A oriente, lá bem no fundo, um idoso observa as hortas, ou a paisagem da cidade branca reluzente ao sol de Outubro. Depois de algum tempo, fixa o olhar perdido nas paredes da fortaleza do Pico. Cruza as mãos sobre o muro e fica algum tempo olhando a serra. Repentinamente, como tomado por uma urgência, olha o pulso, ajeita as calças, compõe o colarinho da camisa sobre o casaquinho de malha e dirige-se para uma cadeira à sombra e desdobra o jornal já lido em busca de novas que não chegam.As letras perdidas e o tempo também.

No outro lado do pátio uma idosa, ainda bastante rija, apanha algumas folhas que a brisa arrastou e maldiz, desgrenhada, a sua sorte:
- Aquela cadela deve arder no inferno. Não me deixou casar... Fez-me a vida negra. Aquilo não foi uma mãe!...
Do rosto corria-lhe uma lágrima de amor não vivido.
Escondida na sombra das colunas, sentada num carrinho de rodas, estava outra mulher.
Aproximei-me.
A mulher mais nova e ainda com valor laboral, voltou a repetir toda a sua lamúria.
Disse-lhe: - Agora não vale a pena lamentar, o que está feita está feito!
Ela insistiu que a mãe lhe arruinara-lhe a vida e o amor.
A senhora que estivera calada olhou-me, sorriu e disse: - É sempre assim, sempre se lamentando... Não lhe dê ouvidos.
- Boa-tarde - Respondi.
O cão aproximou-se dela e logo fez uma festa nas pernas imobilizadas nos apoios da cadeira.
-É tão fofo… parece uma bolinha de pêlo! Ele não morde?
- Não, minha senhora, é muito sociável.
E acariciou-lhe com fome de toque o animal pequenino que se empinava apoiado nas pernas hirtas cobertas por umas calças vermelhas. Ficou algum tempo e depois disse:
- Um animal é de mais confiança e carinho que muitas pessoas.
-É bem verdade.
- Eu sei do que falo. Conheci muita gente. Vim da Ponta do Sol para a cidade, trabalhei na casa de um e de outro a lavar a madeira dos soalhos, a encerar. Conheci muito boa gente, outros nem por isso. Os carros eram poucos. As corças cruzavam a cidade e os carros de bois corriam as ruas do centro. Havia muitos ingleses na cidade e o Hinton moía muitas canas. Foi uma vida dura. Depois conheci o meu marido e casei. Gostava muito dele e ele de mim. Tivemos um filho… depois… - A voz afogou-se numa lágrima que despontou no olhar azul claro - depois veio a guerra e ele regressou de Angola, mas já não era o mesmo… O meu Ascensão nunca mais foi o mesmo. Perdeu a alegria de viver e afogava no vinho o que não podia contar a ninguém…
Uma empregada do lar aproximou-se. Cumprimentou e disse que a senhora precisava lanchar. Na esquina Dª. Agostinha olhou e disse:
-Venha no próximo sábado que tenho muito para contar.
Disse que sim com a cabeça.
A tarde caia, as crianças saiam da catequese e eu precisava regressar a casa.
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Que olhos são os teus? Como é possível fixares tantos pormenores?
ResponderEliminarMuito bom seu texto, parabéns e tudo de bom.
ResponderEliminarNão tenho palavras, Jordas. As tuas enchem tudo e ficam, assim, como que penduradas nas imagens com que me encheram o cérebro depois de, lentamente, ter-te acompanhado por sítios (e pessoas) que conheço tão bem . Repito a pergunta (poética) da Agapê: "Que olhos são os teus?"...
ResponderEliminarOs brincos de princesa, a cataquese, até a Colombo. Jordas, tens a certeza de que não convivemos no passado, em qualquer lugar, e agora cá estamos nós juntos de novo?
ResponderEliminarExcelente crônica e, aos poucos, desvela-te.
Não posso deixar
O mundo girar
E eu, aqui parado
Olhando num espelho
Esperando ser velho
Vendo-me decepcionado.
Vou ter que lutar
Vou ter que sonhar
Vou ter que viver
Vou precisar de querer.
Não há vontade perdida
No segredo da vida
Que é: lutar
lutar
lutar
Desde a nascença
Durante a presença
Até ao nunca mais voltar.
Vou continuar
Mesmo sem motivo
Que melhor incentivo
Constatar
Que estou vivo?...
Incentivo
By bloackt, autor português
Beijinhos
Bom Dia
Rê
Ps: Vou publicar menos, as coisas estão menos:)))
Obrigada pela visita e pelas palavras deixadas no meu "Ortografia". Passarei mais vezes por aqui.
ResponderEliminarBeijos.
Olá Jordas!
ResponderEliminarQue lindas tuas palavras!
Singelas,profundas e fortes,tens uma
lente poderosa em teus olhos!
Fiquei feliz por tua visita em meu blog!
Guti Fraga
Tem um selo de presente pra você em meu blog, passe lá e pegue
ResponderEliminarumcoracaoqueama.blogspot.com