28/12/2019

Memória da saudade


A vida é finita . Tudo é finito até a própria eternidade é finita no finito do meu imenso pensar!
Os dias passam e a lágrima contida soçobrou pelo canto do olho em um rio de saudade e de boas recordações. Foram muitas e boas. No banco da memória tenho guardadas uma a uma, como se de moedas raras se tratassem, porque são muito mais valiosas que moedas... Muitos raras mesmo. Valiosas como os diamantes e não há crédito que as possam penhorar.
Partiste e hoje faz dois meses que num chão de terra regressaste ao colo da mãe Gea.. Nesse espaço de dor e de lamento e de saudade cruel de despedida me deixaste do lado de cá.
Neste momento recordo as tuas chegadas,ao inicio das tardes de sábado e o bolinho de arroz que me davas, depois da longa viagem do horário do Valente, espalhava o sabor de um abraço e a alegria do teu sorriso; depois chega-me o martelar com que arranjavas na madeira informe os brinquedos tão ricos de amor.
Os anos passaram e eu fiz-me homem, mas lá estavas tu, para o conselho de apenas um olhar, essa linguagem mágica, sem palavras , mas que era um tratado de experiência e saber.
Depois ficaste doente. Caminhavas lentamente, mas ainda te arrastavas pela terra dos poios e endireitavas as videiras com a astúcia de um patriarca, podavas os bacelos com o toque musical de uma mínima e o bequado duma mola de podão sempre afiado no pianíssimo das tardes de Fevereiro ou Março.
E os dias foram passando e os cabelos branqueando, os teus primeiro, depois os meus. Aí percebi que o comboio estava em andamento e que a estação final estava cada vez mais próxima e que apesar da lentidão do apito, os dias eram cada vez mais curtos e a angústia de te perder era iludida com a esperança de recuperares, com as visitas constantes ao hospital, com a insistência em dar-te a comida, com a fortaleza hercúlea de um castelo de cartas que me abatia a cada lamento teu, e me dilacerava a alma, com uma fina crueldade duma teatral e fleumática máscara de um filho mais velho que tem de levar a bom porto o barco.
Recordo a tua última ida ao hospital, o teu olhar perdido na dor e a inércia do impossível a morder-me a alma de esperança desiludida. Do meu conformismo e impotência, ali ao teu lado, mas tão longe de mim e de ti, dobrado pela interrogação dum ponto. Perdido e doido de finitude. Foi ali, ao teu lado, nesse domingo de Outubro que senti que não haveria festa no dia 30. Disse-o à minha irmã, com a serenidade finita do desvario impotente das recordações a bombardearem-me a memória. como se de um filme louco e alucinado...
As horas passaram, os dias também. No domingo, preparava-me para almoçar. Depois ia ver-te...
A minha agenda ficou furada. Um simples telefonema e a notícia cortou-me a vontade de comer. Tinhas partido!
Neste momento, apenas tenho a certeza que apesar da tua cadeira de rodas vazia, tu estarás lá na cabeceira da mesa, esperando pela algazarra dos teus netos, orgulhoso dos teus filhos e distribuirás as melhores recordações de presente neste Natal: A memória dos teus ensinamentos e a conduta do teu viver.

07/09/2016

DO MORENO DA SAUDADE


Com saudade da Achada do Moreno

Esta é uma verdadeira festa popular, campesina e serrana. É a mais genuína festa madeirense, feita pelas povoações da zona Este de Santa Cruz. Num misto de paganismo sagrado ou de sacro paganismo. A Senhora dos Remédios todos acolhe sob o seu manto azul celeste. Saudades de calcorrear o mainel da Levada Nova, subir a vereda da Ribeira do Moreno, ver as bicas cristalinas de fresca água caindo na casa-palheiro, a meia encosta, e a cantante água a transbordar do açude da ribeira, onde as rãs coaxavam alegres e inebriadas pelo odor das açucenas que brotavam em cachos rosados por entre a erva madura de setembro e os castanheiros velhinhos ombreando em sombra com os altivos plátanos da velha casa solarenga dos Barreto- Spínola.
Depois vinham os encontros familiares à sombra dos esguios pinheiros na almofada da carga-palha ou da relva rasteira, enquanto um aroma salino de alho exalava das fogueiras onde a carne ganhava cor de assado e os espetos rodavam entre amigos e familiares.O jogo do lenço vinha logo depois, e a corrida de rapazes e raparigas à volta da enorme roda que juntava conhecidos e visitantes, dava ao enorme campo chão o vislumbre de namoros e saudável convivência, apesar dos bairrismos. O Poncha tinha a sua barraca sempre junto à adufa da levada e aproveitava para lavar os copos, sempre rodando no balcão que a ASAE não inspeccionava. A velha senhora dos doces, colares, bordões, saborosos bolos de arroz e suspiro ajeitava no seu tabuleiro, enquanto os miúdos corriam no descampado largo , agora empoeirado. Ao fundo um motor zurrava e a iluminação ganhava cores e os altifalantes vozeiravam cantigas folclóricas e canções recentes.
Depois a tarde caía e era o regresso a casa. Os machiqueiros, que em bando chegaram pela manhã, saiam em romaria pelas veredas da Levada dos Moinhos até ao Lugarinho e abalavam por Água de Pena e descendo a Queimada chegavam a Machico. Nos ficávamos até alpardinha, mas logo descíamos o Caminho das Levadas e havia que chegar a tempo de saciar as cabras e os restantes animais da criação.a festa ficava lá longe, tão longe como as canções que já mal ouvíamos.
Era costume a minha tia Natividade vir a esta festa. Ela residia na Fonte dos Almocreves, quase em Gaula. Os primos vinham com ela. A sua presença era uma festa.
Nesse tempo as horas não tinham minutos e os dias eram longos e sorridentes, quase tinham mel no bico como os figos da velha "bebereira do meu avô.