12/05/2009

Bolo de arroz



Era pela maresia infantil das manhãs de domingo, ainda eu vestia calções e usava “arrigeiras” pelos ombros, cruzadas no meio das costas. Lembro bem o cheiro do bolo de arroz feito de madrugada, e o sorriso da Sr.ª Madalena, quando me via chegar com os dois cruzados fechados na mão, de olhos vivos e brilhantes de desejo ao sopé da cabana do barbeiro. O Sr. Silva era uma homem baixo e entroncado, cabelo cortado à escovinha, branco como a neve, rosto redondo e vermelho, e um sorriso sempre pronto, os seus olhos claros deviam a cor ao facto de estar sempre olhando o mar. Lembro-me da sua imagem a preto e branco na Tv, depois do desastre do avião, foi das primeiras pessoas a chegar ao local do sinistro. Calcorreava, todos os dias úteis, os vários sítios de Santa Cruz, saindo da sua oficina, pelas dez horas, depois de atender a freguesia.
Mas voltemos à giga dos doces. Ali estava ela com o balcão enfeitado de bordões, suspiros e colares multicolores de gulosos rebuçados. Recordo o aroma dos suspiros e os bolos de arroz alinhados a um canto do tabuleiro, alinhados como guerreiros; a giga, de vime descascado, servindo de pilar e apoiado no “pagão” de EEM, com a sua lâmpada, protegida por um prato branco na face inferior e verde na outra, ficava um bordão de cana e o guarda-chuva. Era ali, no Medeiros, no antigo entroncamento para o Santo da Serra, na cabeceira quatro do aeroporto, em frente da “bebreira” preta, que descia despreocupada o muro em pedra aparada e fazia as delícias dos fedelhos, no mês de Setembro, apesar dos protestos do Xirica e do maneta do Florenço, que ela todos os santos domingos montava a sua banca, pelas sete da matina. O Silva, o barbeiro, desde as cinco que cortava cabelo e desfazia rijas barbas de rudes homens da lavoura, a sua petromax espalhava uma luz branca, visível, a muitos metros e que se tornava quase sol, quando eu passava em galhofa com os meus irmãos e vizinhos, pouco antes das seis, por debaixo das janelas que davam para o mar e para o enorme dragoeiro que embelezava a descida para o antigo cais e cadeia a Nascente da Ribeira do Moreno. Em Agosto, ali se ficava vendo os Ford Escort RS a fugirem de trás, os Minis a fazerem esses, os Opels Manta a roncarem como demónios, quando vindos do Funchal e se dirigiam, no decorrer do rali da Madeira, para a apertada estrada de paralelepípedos que conduzia ao campo de Golfe. Ali, onde eu esperava pelo meu avô, de cabelo já muito ralo e branco, escondido pelo chapéu preto, levemente caído para o lado, que sempre tinha dois cruzados ou cinco tostões , daqueles brancos, com uma cabeça de mulher, e com alguma prata, para uma guloseima. Sim porque eu herdara o nome dele, e não apenas o sobrenome. Era o seu primeiro neto. Recordo esse tempo em que íamos à missa das seis da manhã de domingo, dita pelo enorme Padre Gabriel. O avô levava-me a ver os barcos a varar e ensinava-me o nome dos peixes. Ele adorava congro. Dizia: " congro é comer e coçar no lombo". Aquele homem marcou a minha vida, desde que me lembro. Ensinou-me a arte da poda, da enxertia, do sacudir o restolho, de reerguer paredes, de fazer vinho... Sei lá! Não me ensinou a ler, porque não sabia, mas no dia em que fui pela primeira vez para a escola, comprou-me uns sapatos e disse-me: - aprende a ler e a escrever, para poderes ler ao avô o jornal. Era um homem do seu tempo. Um bom homem, sobretudo ao domingo, quando me dando cinco tostões me dizia : - Não gastes tudo num dia, guarda o que ficar, pois não sabes o que vai acontecer amanhã. Muitas vezes ouvi este conselho, e muitos outros que me serviram no caminho da existência. O avô há muito que foi, a mulher também, o local foi engolido pelo aumento do aeroporto, mas na memória tudo permanece: o cheiro do bolo de arroz e o sorriso de satisfação daquela mulher que todos os domingos continua encostado no poste de electricidade, no Medeiros com a giga branca e o tabuleiro enfeitado de recordações. O menino, timidamente, dirige-se para lá em busca dos aromas da infância.

2 comentários:

  1. Correu um boato, hoje, pela escola, que havia alguém «cronicando' por aqui: encontrei o que andava à procura ;) Este texto sobrevive a muitas leituras, surpreendendo sempre cada vez mais...

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  2. A avó analfabeta também o tive e muitas saudades sinto das tardes que passámos juntas! Obrigada pelo reavivar das memórias que já nao tinha e pelos momentos que revivi...

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