25/06/2015

Olivinha, a carregadora da nata.


A tarde cai fresca de orvalho, embalada pela brisa marinha que sacode, pacientemente, as folhas dos velhos plátanos, carcomidos no seu âmago pela incúria, ou talvez saudade de outros tempos. A antiga construção, onde, antigamente, se acumulavam as latas de natas, e o cheiro da soldadura elevava-se em rodopio fumarento até às altas copas rendilhadas de sombra e luz dos elegantes castanheiros canadenses, hoje é uma sombra da antiga fábrica da “Borné”, (assim se nomeava a antiga fábrica da manteiga) em que, uma casa senhorial, com lagar e capela, cujo santo deu o nome ao sítio - S. Sebastião- laborava de manhã à noite e produzia uma das melhores manteigas da ilha.  
Recordo a entrada vigiada por parras ressequidas, cobrindo de sombras os calhaus rolados, enlaçadas no ferro-ferro das latadas, desenhando intrincadas figuras geométricas nas irregularidades das raízes que moviam a calçada. A desnatadeira que rangia um pouco mais acima, e a Isabel esperando pelos fregueses produtores de leite para lhes apontar a colheita e recolher o produto das vacas, tratadas a erva e palhada de cana ou a bananeiras picadas com rolão… Dura vida a do agricultor!... Aquele local é hoje apenas sombra da memória. A memória que ecoa no que resta da velha casa são a  voz do mestre André; a gargalhada do Eduardo Lancha, as disputas dos irmãos Parrucas;  o choro do paquete, que descalço,  percorria a vila e distribuía encomendas. Tantas vozes silenciadas pelo esquecimento da modernidade que se abateu sobre o antigo prédio e fazenda, que crescia desde a estrada do aeroporto até ao norte da casa enorme e robusta nos seus cunhais de basalto que angulavam as suas grossas paredes. Memórias apenas que há muito entraram no álbum das recordações, ou embarcaram no das saudades da emigração.
Da capela, onde em pequeno estive  numa missa do padre Gabriel, acompanhado pelo Francisco,  o sacristão, nada resta, nem sei que destino teve o seu acervo. Parte da quinta foi devorada nas diversas ampliações do aeroporto, tal como as quintas a sul, apenas resta parte do velho edifício, onde se amontoam carros de uma agência de aluguer. Ainda resistem um ou dois plátanos, últimas testemunhas do choro sufocado da Olivinha, que na dor esquecida dos pés descalços, vivia a angústia da mãe que tem os filhos na guerra. Nunca lhe vi uma lágrima no sorridente gesto, apesar da carga que sempre transportava à cabeça, aliviada pela sogra enrodilhada em que pousava a enorme lata de chapa zincada que levava cheia, desde as Eiras, todos os dias, e depositava, intacta, no armazém das natas da fábrica.
Olivinha vivia numa casa térrea no sítio do Janeiro, perto do Estiqueta. Acedia-se à casinha, por um braço de vereda calcetado a pedra mal lascada, com pouco mais de meio metro. Ela, mulher forte, de corpo masculinizado, com pernas duras das descidas e subidas do empedrado destino, que mais pareciam duas colunas gregas, não perdera  os traços feminis, nem a graça de garça, e, mesmo carregada, o seu pescoço fino e alto aprumava-se de uma elegância que só as mulheres sabem ter. Era uma daquelas mulheres de quem até Hércules teria respeito e veneração.
Lembro-me dela descendo do posto das Eiras. Assim se chamava o local em que, logo  de madrugada,  se desnatava o leite, ficando as natas para a Companhia e o soro para casa. Era um local sombrio, onde uma velha máquina, rodando, separava a gordura do leite que caia na enorme lata, companheira e confidente de Olivinha.
Nunca lhe conheci sapatos nos pés. Sai da ilha e regressei e fui encontrá-la, muitos anos depois, cabelos brancos, apanhados na nuca, à sombra das bananeiras, à entrada da vereda, mais larga, de casa, já o caminho do Janeiro alcatroado, assim se diz por aquelas bandas, bordando de sorrisos uma toalha de linho cru. Os filhos há muito tinham regressado da guerra, e organizado as suas vidas. Já era avó e bisavó e ela calçava, agora, umas sapatilhas. Estava viúva de mestre Pedro. Ainda se lembrava de mim. Tinha uma memória incrível. E entre conversa e brincadeira disse que eu em pequeno era um malandreco e que se recordava da missa celebrada na capela de S. Sebastião, pelo padre Gabriel. Disse-me, e eu nem me recordava, que fora eu que lera a epístola. Na verdade pouco recordo da capela, da sua decoração, se havia santo ou se o santo tinha muitas setas, se seriam de prata ou de madeira… O que importa é que a capela desapareceu, como tantas outras pela ilha. É pena… É preciso manter acesa a chama da memória do que fomos para podermos ser o que queremos.
Depois, raramente a via. Quando em visita à terra que me viu nascer, descia o caminho do Janeiro, às vezes ainda parava à entrada da vereda, mas dela, nem vulto. A casa parecia abandonada e as silvas começavam a tomar conta do terreno, até as figueiras tinham morrido ou sucumbido à sede. Vim a saber que, em idade mais avançada, se recolheu em casa de um dos filhos e lá passou o final da sua vida, bem menos agreste, sem latas de nata, sem dores nos pés martirizados pelo subir e descer do caminho.
Hoje, quando desci naquela estrada, e ao chegar à Laurindinha, soltou-se-me da memória a imagem elegante da Olivinha, levando à cabeça, não o peso da lata de natas, mas a elegância duma mulher única que conheceu aquele caminho, e em cada pedra da calçada deixou uma sílaba de poesia, caminhando para uma quinta que apenas existe na memória, mas em cuja lata cabe toda a saudade.

imagem : GoogleEarth

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