
Assim é a tarde dos primeiros dias de março: Uma guerra entre o passado e o futuro; entre o dia e a noite, entre a terra e o mar, mas, afinal, a praia é território comum. O horizonte é a cama do dia e o despertador da noite... E entre esta aparente dicotomia teimosa o dourado reina indiferente às lutas e une os opostos.
A luz dourada abre a esperança de um novo dia, mesmo que a noite seja o seu berço, porque a madrugada será o seu regaço.
"Por janeiro fora cresce uma hora e quem bem contar em março mais que uma vai achar"- Diz o povo e repetia sem conta o João Valhaco.
O Sr. João era um homem de negócios. Vestia de forma diferente. E o seu passado tinha sido viajado pelas Antilhas. Estivera no Curaçau, mas naquela tarde estava ali, observando, não o Cabo Girão, mas as rochas do outro lado da Ribeira do Moreno, onde agora crescem acácias e silvados, e as veredas dessa memória que eram verdadeiras estradas de gente e carga, desapareceram no aroma fátuo da fúria civilizacional. Estou ali com ele, encostado às varas do curral, onde um chibarrinho, que já reinava, tentava cobrir a cabra branca que a minha mãe mandara levar ao cabrito, e ele como homem experiente olhava a abelhinha verde e preta do Marculino trepando os degraus do caminho das Levadas.
- Aquilo não foi construído para carros, rapaz, - Dizia com o cigarro Santa Maria preço ao beiço, como se uma cola invisível o segurasse no canto já murcho do tempo e das palavras amargas que nunca foram ditas.
- Então, senhor João, para que foi calcetado aquele caminho?
- Nunca viste o Gouveia passar com as juntas de bois? Nunca o ouviste dizer "chega à direita amarela? Aquela vaca já tem uns dez anos, mas ela comanda toda a junta. Aquele animal é esperto.
-Sim, até já vi o filho dele a pastar os bois e os novilhos com as vacas pela Malcavada.- Respondi a medo.
- Aquele caminho foi feito para corças, não para carros. Não tem muito tempo passavam tantas juntas de bois para cima e para baixo com chama para as padarias, e para atupir nas bananeiras, com canas e varas. E, para cima traziam erva e materiais para as vendas. Tudo tinha um ritmo de água e sol. Um ritmo da vida e das estações. Os relógios eram de sol e lua...
- E como era esse ritmo?
- Era como se todos os homens e animais e até o vento e a chuva soubessem o seu lugar no tempo e no mundo. Cada coisa a seu tempo. Vês a cabra que trouxeste?
-Sim... - respondi de olhar perdido no chão- ela veio sem me dar trabalho. Parecia que sabia o caminho...
- É isso mesmo. Os animais sabem o ritmo da vida. Estive do outro lado do mundo. Saí daqui a minha casa era de palha... Uma miséria, mas à noite era o melhor lugar do mundo. Fui para o Curaçãu levado pelo Hinton. Fui trabalhar na petroleira. Estive lá vinte anos. Era uma vida diferente, onde havia tempo e hora para tudo. As saudades matavam-me a alma... A saudade é uma morte viva que te alimenta a dor e estende a distância como a corda que se estende na serra para emolhar a charuga, mas que sabemos que nos vai apertar o choro na garganta e acatamolhar as lágrimas como torrões nos olhos, onde apenas chega os grãos de sal...
A história estava a agradar-me... Todos os garotos do sítio tinham medo do Valhaco, e, quando a minha mãe me ordenou, de guita na mão, que amarrasse a cabra para a levar ao cabrito do Sr. João, um nó de temor inutilizou as minhas pernas, mas um "despacha-te que ela está saída" quebrou o meu medo de mais medo e pegando na corta e abalei para o Lombo e amarrei, pelos cornos bem torneados, a chiba.
Entretanto o chibarrinho tomou a cabra.
- Puxa a cabra para fora! - Ordenou com a sabedoria dum patriarca. Está já está pegada, daqui a cinco meses diz-me alguma coisa!- E um sorriso de sabedor aflorou-se na rigidez do rosto.
- Quanto é Sr. João?
- Não é nada. Quando a Encarnação vai buscar água à casa da tua mãe paga alguma coisa? Depois isso é comigo e com o teu pai.
A nossa casa era das poucas que tinha água de pena. Nesse tempo podíamos abrir a boca à correnteza das levadas e saborear a frescura corrente dos canais.
Eu tinha levado algum dinheiro, não sei quanto, mas quando cheguei a casa entreguei-o à minha mãe.
- Obrigado...
Endireitei-me como um homem do cimo dos meus oito anos, segurei a cordita e puxei o animal em direção a saída dos currais, com a cabra a querer ficar, arrastando-a. Puxava, mas ela não vinha.
O Sr. João ria com o meu jeito ou com a falta dele para conduzir a rês.
- "Poe-na" à tu frente e com a ponta da guita bate-lhe nas ancas e ela irá para onde quiseres! Vê!
E não é que a cabra começou a subir a vereda direitinha e disciplinada, aproveitando cada nesga de terreno que sobrava do lanço da água de rega.
Naquela tarde aprendi a ser condutor de cabras!
Levei a cabra ao curral, pela vereda das Rochinhas, depois pela do Fundo da Cova e finalmente, pela do Lombo. Estava curioso por ouvir outras história do Coraçau e dos caminho que o Sr. João fazia quando percorria a ilha, a pé, para vender fazendas às raparigas casadoiras, antes de partir para as Antilhas. Era só esperar que a cabra preta do avô saísse, ou a da tia Lurdes... Pensava com os meus botões, enquanto os meus pés descalços voavam de volta ao poio onde os outros garotos brincavam com uma bola amarela saída na rifa ao Bicaberto.
Afinal, o Valhaco não era tão má pessoa como o pintavam. O certo é que vivia numa casinha térrea, no fim do sítio, com a Peixinha, como era conhecida a segunda esposa, que nunca lhe dera filhos, mas tinha uma pele branca como a neve, e uma voz de cantora lírica.
Hoje o sítio cresceu e a casa foi muito melhorada, mas sempre que desço a nova estrada do Pardieiro, lembro o cheiro do tabaco e vejo um casaco de pele castanho vestindo a minha memória de menino.
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