14/07/2013

Maria Coelha


   Maria da Carolina, havia quem lhe chamasse da Carrolina, ou Maria Coelha era uma mulher de um outro tempo. Era vizinha, vivia numa casa térrea, a uns cem metros da nossa casa, sombreada por uma enorme figueira castanhal, onde o marido, o Sr. João, moldava o vime em lindos cestos de vindima, de braço, de merenda, em cestas para almoço e gigas de medida e, de nacos de madeira, arredondava, à navalha, disputados piões. Ela era, relativamente, alta para a média das mulheres. Do negro vestir da sua viuvez, transpirava uma forte personalidade que se refletia no acto de sempre andar em contacto com a mãe terra, onde os seus pés, constantemente, se ligavam numa pertinácia de vontade e destino. Os sapatos, feitos à medida, no Nervoso, apenas a incomodavam, quando tinha de ir à vila, ao domingo, ou à cidade uma ou duas vezes no ano.
Naquele tempo a cidade ficava longe. Tão longe como Lisboa! Os horários demoravam mais de duas horas a chegar à capital e, entre as curvas e o ruído, as pessoas sentiam-se num mar de tempestade. Num balançar tão anatural que muitas vezes se perdiam as tripas, e a palidez inundavam a angústia do regresso, que só acontecia ao fim do dia, pelas dezoito horas, com sacos e cestos empoleirados na tejadilho do autocarro, por onde se acedia por uma escadinha, ao ritmo do "vai à caixa," ou do "pode seguir", secundado pelo ritmada fechar das portas,  que, em andar lento, penetrava na noite, lá pela subida do Pináculo e pelas curvas da velha estrada de paralelepípedos de negro basalto, robusto como ela e as mulheres desse tempo. Quando  as luzes iluminavam o  Moinho do Valente, já noite feita, os magotes de garotos exultavam de alegria e perdiam os medos. Tinham esperado  os familiares, entre jogos de distração e espectativas de medo, para os ajudarem a carregar as compras.
Aprendia-se muito cedo a importância da solidariedade entre gerações e a coresponsabilização pela comunidade. Muitos dos fedelhos eram apenas vizinhos que acompanhavam os mais crescidos, mas havia sempre algo para poderem ajudar a carregar, nem que fossem as perguntas sobre esse lugar donde chegavam sempre notícias novas que povoavam as suas cabecinhas de desejos diferentes pois a infância do seu meio vivia dos medos de corgos e ribeiras, das furnas e dos montes de pinheiros habitados por homens malinos, fantasmas, bruxas, feiticeiras, diabos e mafarricos…
O Moinho do Valente era o término da carreira 127 da SAM. O velho moinho pertencia à família dos Pereiras da Terça. O edifício ainda lá está, não sei se ainda funciona. Um pouco adiante, mesmo na apertada curva, onde o caminho velho da Terça desce, fez-se um desvio para a manobra da camionete de longo nariz do Internacional, depois do AEC . Dali, depois de descarregadas as compras, descia-se a vereda do Troca em direção à Cafusa ou  para o sítio do Janeiro, levando-se, nas noites mais escuras de inverno o suzico de petróleo como lampião, por entre as fazendas primorosamente trabalhadas, seguindo-se as veredas mínimas até aos velho caminho de pedras irregulares, por onde desciam as corças, prenhes de mato e lenha, tracionadas pelo suor pingente das testas de homens robustos e pouco dados aoslamento. Os outros passageiros  da zona alta ou os das Eiras, tinham mais sorte. A Levada dos Moinhos servia de percurso. A vereda mais chã e melhor acomodada pelo cuidado contínuo dos levadeiros, tornava a jornada mais suave. Transportavam os sacos de farinha, de açúcar, caixas de óleo… e os cestos vazios que na madrugada tinham carregado galinhas, ovos, ervas de cheiro, verduras, frutos…
A levada chamava-se assim por, ao longo do seu percurso, desde a Madre D’Água, na zona alta de Santa Cruz, até ao sítio do Lugarinho, onde terminava, ter vários moinhos que moíam o grão e as esperanças de muitos lavradores, melhor, das suas esposas, pois eram elas que geralmente lá iam moer o grão e as suas mágoas em dois dedos de conversa, enquanto o moleiro ou moleira retirava a maquia ou a quarta como pagamento. O moinho era o lugar da paciência. Ali tudo tinha o seu ritmo, até os ratos eram molengões, e o gato, paciente como o rodar da grande mó, arrastava gordo e sonolento por entre os sacos e os utensílios da oficina. Vivia-se  ao seu ritmo das  plantações e ali, ao da queda da água pelo combro de encontro às pás movedoras da grande pedra.
Mas voltemos à nossa heroína.
Era vê-la na rega da costeira, onde o pequeno palheiro se fazia notar no colmo renovado, ao lado da velha e doce anoneira, ladeada pelo suculento araçaleiro (araçazeiro) amarelo que fazia as delícias dos garotos nos meses quentes de verão; No talhe certeiro e artístico com que rapava as ervas, com a sua foice  pequena, mas sempre bem picada pelo Borreca. As rodas de parede  dos poios pareciam sebes aparadas e os pés da erva de fora, mantinham-se arredondados como uma arvorezinha  de jardim de Senhor. Ela  alimentava com a erva  a bezerra que criava, mas que não era dela;  Era vê-la carregar os molhos de erva fresca que trazia das rochas, que se estendiam em irregulares socalcos ou em barrancos em direção à Fontinha, ou da zona do Valhaco, onde os poios eram maiores e de paredes artisticamente aprumadas, sempre numa harmonia de dançarina, no alto da cabeça,  e com as mãos livres, onde,  muitas vezes, uma vasilha de zinco com a água ou com a borage (lavagem) se pendurava, e um balde feito duma lata de massa de tomate ou arranjado no picheleiro, com um arame mais grosso, atravessando um canelo de madeira, servindo de suavizador à mão, levava as sêmolas ou o rolão para a bananeira que iria picar para a novilha.
Nos meses de Verão, ali pelas tardes soalheiras de Julho ou nas suas manhãs serenadas, ela cantava reunindo as espigas em canções de ceifa, sempre tristes de tom árabe, mas perfumadas pelos damascos que amarelavam de rubos tons no damasqueiro que oferecia a sua sombra nas horas de maior estio e na algazarra dos piquenos que apanhavam as espigas por entre  os tremoceiros, e os chícharos das rodas de parede onde as uvas começavam a pedir baraço, ou limpavam a estiva que serviria para plantar a rama nova no próximo giro da água. Ela seguia o ritmo da vida.
Logo pela manhã, subia o Lombo a tratar da novilinha, a mondar as leiras, a limpar os cachos de banana, ou ir até ao Moreno apanhar  o feno que deixava estendido a secar. Pelas nove, quando eu ia ao curral das ovelhas deitar-lhe comida, ela já descia  com um molho de charuga para servir de cama à vaquinha.
Ela era uma mulher forte como um carvalho. Dos seus olhos, a sabedoria da vida fazia-se fascínio e doçura, apesar duma vida dura, e o seu lenço preto, sobre as cãs, embora testemunho da sua viuvez libertava-se num sorriso de mulher feliz.
Esta foi a Maria Coelha ou da Carolina que conheci na minha infância.

5 comentários:

  1. Gostei muito. Trouxe-me recordações da minha infÂncia, dos lugares e pessoas.

    Lina, Janeiro

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sempre que me dá uma saudade desse tempo, lanço mãos à memória e tento descrever o que foi esse passado duro , mas tão feliz!

      Eliminar
  2. sim e da avó virginia nao escreves nada e k ainda nao vi essa mulher era da idade da avó

    ResponderEliminar
  3. Não percebi o último comentário!

    ResponderEliminar