28/01/2011

OLHAR RETROSPECTIVO

O velho estava descendo a rua.
Camurcina verde usado e calça de ganga envelhecida. O rosto branqueado pela barba despontada, o cabelo grisalho desalinhado e o olhar líquido de frio.
Os passos lentos e pesados das sapatilhas gastas dos dias arrastavam-se, negras, sobre a rua molhada da manhã ainda sem sol daquele dia.
Apressados, corriam em direção aos trabalhos, automátos e ausentes, agarrando os casacos, muitos jovens cabisbaixos e conformados com os cortes e a precaridade dos seus empregos. O velho olhava-os e os seus liquidos azuis entrIsteciam-se e mecanicamente meneava a cabeça e balbuciava descrente:
- Fizemos o 25 de Abril, conquistámos a liberdade e vivemos bem, mas condenámos estes jovens a uma nova ditadura. A ditadura da incompetência. A ditadura da monotonia de vencer desafios.
Os dedos percorreram o peito como em acto de contrição e o caminho ficou mais curto, quando se sentou no degrau de uma porta com o número 33 da polícia.
Subi a rua e fiquei pensando naquelas palavras. A nossa juventude está ficando conformista e apática, quase escrava daquilo que lhe é dado. A nossa juventude está sendo domésticada para não pensar, não ser crítica. Dá-se-lhe o acessório e não o essencial. Não se a apoia para ser actor neste teatro da existência e da dificuldade. A juventude está velha, anémica, incapaz de levantar  a bandeira de um ideal novo.
Olhei para trás e o velho já tinha abandonado o local. O mundo da cidade, agora dourado pelo sol que subia no horizonte era o seu palco. A cidade era um enorme teatro e o velho declamava o monólogo do vagabundo, mas a plateia estava sem público.
O público estava conformado com os cortes salariais, mesmo quando o Estado aumentava as despesas supérfulas e as políticas de austeridade nada faziam para conter a desgraça nacional, como se tivesse sido ele o responsável pelo ensaio e execução da peça e não o encenador e os actores, e ,agora, não tinha tempo nem fome de cultura.
Os homens viviam curvados pelo peso do ter e o medo de perder. Viviam curvados pelo provir e esquecidos de viver o presente.
Veio-me então o outro pensamento de um outro vagabundo da cidade. Homem letrado e desprendido que encontrei à sombra nocturna da figueira da Índia:, “nenhum governante quer o seu povo culto e com capacidade crítica. Se assim fosse os governantes teriam de ser sábios. Ser sábio e recto é tarefa demais para a classe política, porque ela vive do jogo do engano e do simulacro. Ser sábio é ser desprendido e obreio dos caminhos da pessoa humano. Eles apenas querem as pessoas nas vésperas dos actos eleitorais. Na comemoração da vitória dizem-se representantes de todo o povo. Até nisso mentem, pois nunca o serão de quem não votou no seu projecto.”
Retrospetivamente deambulei pelo passado recente do meu país.  Entristeci com o presente. Lamentei-me do futuro que ajudava a construir. E tal como a noite na sombra da figueira fiquei pelas sombras e não fui capaz de olhar a lua que se desnudava no céu limpo. 
A rua enxugava o pensamento e alguém bateu-me ao de leve nas costas e convidou-me a tomar café.

6 comentários:

  1. Muito obrigada por comentar.Ficarei feliz ,se seguir meu blog.
    Muito obrigada !

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  2. Jordas

    Têm já vindo a ser pedidos sácrifícios ao país, pelo que vejo não fica por aqui. A mesa do Estados. que somos nós nunca deixa de ser bem abastecida. Os menos abastados que paguem a crise, como se tivessem culpas da má governação.
    A crónica está bem adequada à època que vivemos.
    Abraço

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  3. Belíssima crônica Jordas. Verídica ao tempo de todos nós. País e paises a vivenciar dessa mudança abrupta, estrupadora da dignidade e sensibilidade de cada um.
    O mundo girando, o uso fruto mal direcionado, aproveitado, nos desgaste públicos e insóbrios em nossa pátria...
    A inteligência pessimamente utilizada onde ninguém é de ninguém, cada um por si somente e só.
    Sentimentos atropelados, onde se vigora apenas o poder. Enquanto isto a nossa natureza sente, uma cadeia que se destende e o mundo segue definhando a cada dia. Talvez seja a necessidade batendo a porta, para que se não for pela bastança, que seja pela miséria para que todos possam se dar em abraços, unir-se e dividir o pouco que se tem, porque assim restará, até que venhamos a pegar como exemplo o pão e o vinho que Jesus, assim dividiu um dia entre seus doze apóstolos...
    Não há uma folha que caia, que não seja chegada a hora. Assim é o verbo que devemos conjugar...

    Parabéns pelo teu riquíssimo texto.

    Obrigada pelo comentário postado em meu cantinho. Estava em férias, agora de volta ao meu aconchego, onde nas palavras buscamos gestos de divisão, de carinho e compreensão sob o prisma de cada um que passa por nós....

    Bjs

    Livinha

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  4. Ola Jordas
    Obrigada pela visita

    Um 2011 de paz e amor

    abraços

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  5. Triste, a crónica ao som da Amália, mas necessária e bonita de ler. Obrigada!

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  6. adoro cronicas. gostei bastante deste blog :]

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