09/11/2010

PORQUE MORREM AS PALMEIRAS

Ela estava lá. O sol estendia-se vagarosamente e enegrecia de brilho o empedrado de calhaus redondos, aqui e ali, verdejantes de teimosas ervinhas que cresciam despreocupadas dos pés que as calcavam, ausentes para lá das colinas a esverdearem-se de fetos e graminhas que àquela hora se espreguiçavam pelas encostas da serra. Aqui verdes escuras, ali castanhas de queimadas, acolá verdes de raiva, além lascivamente tenras de verdejante apetite do gado que delas se ausentou. Recordo o olhar aberto com que me recebeu. Era um olhar negro e vincado da vida, experiente de velhice e arguto de avaliação:

- Então, sempre veio. Eu sabia que vinha!
- Boa tarde. Como tem passado?
- Bem com a graça de Deus! Se estamos com Deus estamos bem. Tudo se resolve. Tudo tem solução!
- O meu avô dizia que sim!
- O menino, não acredita? Disse com ar reprovador.
- Bem, eu …
- Não diga mais nada Esta juventude pensa que pode com tudo, mas com Deus não se brinca.
Abanei a cabeça afirmativamente, ainda não reposto da frontalidade de D. Agostinha.
- Sabe? - Continuou ela – As enxurradas que vieram em Fevereiro mostraram que os técnicos fazem, estudam, programam, pensam-se os maiores, vem o Poder de Deus e tudo é varrido. Foi sorte só ter morrido aquelas pessoas. Eu não acredito! Morreu muita mais gente! O menino não acha?
- Bem… Os números foram aqueles …
- Aqueles!? Questionou indignada. - Eu tenho muitos anos e passei por outras situações semelhantes, mas com menos chuva e menos gente. Eu sei que nos enganam. Estão sempre a nos enganar.
- Temos de acreditar em alguém! Nalguma coisa…
-Acredite em Deus, nos homens?... Só se pode acreditar em alguns.
Depois pediu-me que lhe colocasse o xaile sobre os ombros e levasse a cadeira de rodas mais para norte, que a encostasse à parede que estava mais enseada da brisa e uma réstia de sol vespertino dourava a cal da parede com sombras ondulantes de palmeira.
- Aquela palmeira, está vê-la?
Eu olhei para o jardim verde e sombreado de formas caprichosas de árvores, por onde se destacavam as copas das palmeiras redondas de frescura.
-Não é desse lado, é aquela ali à direita, ali junto ao portão, onde os meninos têm catequese. Olhe bem!
Desviei o olhar do frondoso verde que se estendia atapetado de relva até à Avenida e se prolongava até bem perto do mar e encontrei uma velha palmeira, esguia e alta, mas sem jovens palmas. O sol batia nas folhas descaídas de desânimo e brincava com a brisa que as sacudia com delicada suavidade.
- Sabe porque morrem as palmeiras?
- Não. Recordo que há cinco anos, depois de ter sido limpa, após as obras, ela pareceu-me cheia de vida e alegre por dar sombra às crianças e se aproximar leve do céu.
- Sabe? Está como eu. Está presa, e a morrer aos poucos. A única diferença é que eu morro de velhice, ela, porém está a morrer da ganância de alguns! Os velhos são ignorados pelos mais novos, as palmeiras da Madeira foram esquecidas e abandonadas. Veja-se a loucura destes políticos. Palmeiras por todo o lado. Somos África ou o deserto? – Depois, mexendo as mãos desesperadas de abraços. - Ainda não aprendemos a valorizar o que é nosso e os que nos deram sombra e agasalho nas horas duras! Elas morrem, como muitos velhos, de indiferença.
- Como assim? Ela está a morrer do escaravelho. É o que dizem os jornais e os responsáveis pelos jardins do município! As plantas não têm sentimentos!
- Eles dizem isso? Tá ver! Tá a ver! Estão a enganar. Não apontam o culpado, nem a causa disso! São uns cobardes! Ela e muitas outras estão a morrer porque se foi comprar tamareiras ao Norte de África. Eram mais baratas. Para eles, claro! Elas trouxeram os mosquitos e os escaravelhos que não devoram as tamareiras, mas trucidam as nossas palmeiras. Puro negócio! E nunca mais diga que as plantas não têm sentimento. Tudo o que existe tem sentimento. Ela é capaz de chorar contigo, de sorrir contigo. Alegra-se e entristece com as crianças…
- Não sabia disso! Desculpei-me trucidado pelo aviso experimentado da força cativa daquela mulher.
-Para eles é sempre negócio: Primeiro trouxeram as tamareiras, agora dizem-se conhecedores e pedem fortunas para tratar as nossas palmeiras. Bem dizia o Sr. Dr. Jana… - Levou a mão à cabeça, como se tentasse ler no disco da memória as palavras exactas daquele advogado. -“A cobiça fará da nossa terra um deserto, mas o maior deserto é o da ignorância”. Sabe esse deserto já começou. Ninguém sabe de nada! Ninguém quer saber de nada! Mesmo que a ilha arda ou a chuva traga as serras. Tudo é negócio. Ninguém pensa no povo, apenas no seu bolso.
- Mas dona Agostinha, eu vinha para falarmos da sua experiência no Funchal de meados do século passado! - Disse para pôr alguma serenidade na revolta da idosa.
- Isso fica para outro dia. Já está na hora da minha retirada. Esta mudança de hora ainda não me entrou na cabeça. Mas já a sinto nos ossos.
Uma senhora, vestida de branco rigor, aproximou-se levando a cadeira entrou numa porta lateral.
- Para a semana, venha mais cedo. Até lá espero que não vendam o país!
Não percebi aquele aviso. Há dias que nem vejo as notícias. Elas têm a capacidade de fender as rochas mais basálticas da ilha.
As crianças saíram em enorme alvoroço e entraram nos carros dos pais, outros dirigiam-se ao enorme portão e foram de fim-de-semana.
A brisa tinha sabor a tarde, apesar de serem dezasseis horas.
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3 comentários:

  1. uma boa semana!
    Sau ce a mai ramas din aceasta saptamana.

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  2. Fico à espera do próximo encontro com a D.Agostinha ;)

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  3. Gostei muito do texto. E que não morram mais palmeiras...
    Beijos.

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