12/04/2010

AROMA CITADINO

A manhã despontava por detrás do cabeço pelado. Antigamente, na década de setenta do século passado, aqueles montes estavam cobertos de pinheiros que desciam até mais de meia encosta. Hoje sobem as casas quase até ao topo, em cores diversas e estilos díspares. Produto de uma urbanização rica, mas pouco cuidada. O coberto vegetal deu lugar ao coberto de cimento. Algumas quintas acolhem jardins e árvores importadas, palmeiras e relvas que atapetam os canteiros em volta das azuis piscinas.
O sol subiu um pouco e, rubro de cor, afasta as nuvens da escuridão. Os brancos do casario enche-se de ouro e as nuvens algodoadas matizam-se de cores e tonalidades diversas.
O dia está a levantar.
Desço a cidade onde os jacarandás se vestem de roxo, e outras árvores enriquecem a enorme tela de pintor que se abre em forma de concha vieira do mar à serra.
A cidade acordou.
Movimentam-se carros, pessoas, crianças para as creches e escolas.
No mercado o vendedor de peixe atrai os clientes com sua voz rouca e grossa:
- Atum fresquinho da noite. Fresco e barato, até cheira.
Nas escadas do mercado os olheiros apreciam o deambular das caixas de peixe miúdo, os cestos das frutas e os maranhos de legumes. O ar  aromatiza-se de fruta madura. No café da entrada o guloso aroma da carne de vinho e alhos faz nascer água na boca.
É para lá que me dirijo.
-Bom dia.
-Bom dia. Uma chinesa e uma sandes de carne vinho e alhos. Bem aviada!
A moça sorriu. Um sorriso largo e acolhedor. Depois apertou na máquina o café, com um movimento rápido e desembaraçado, a manete e um líquido preto correu em fio espumoso para a xícara larga. Dirigiu-se ao recipiente do pão, tirou de lá um apezinho fresco e com um movimento afinado abriu-o e logo o encheu com a carne suculenta a cheirar a alho e segurelha. De seguida estendeu um alvo guardanapo branco num cestinho de plástico, mas que emita o vime e colocou-mo à  frente:
- Bem aviada, como pediu! - Disse com um maroto piscar de olho.
Dum saltou retirou a chávena da máquina do café, adicionou o leite e entregou-ma.
Eu já mordia a sandes com vontade canina.
Adicionei açúcar e lanço o café extasiante à boca.
Lá fora, reparo, o movimento aumentou. Uma guia, com uma estrelícia conduz os turistas ao mercado, explicando a sua história e referindo os acontecimentos de Fevereiro último. A esplanada está cheia. As árvores ganharam cor com a chegada da Primavera.
Encostado à vedação verde que separa o passeio da estrada está um homem. Barba feita, cabelo aparado e penteado, camisa branca fresca, calça de ganga engomada, sapato preto. Sobre o ombro esquerdo têm um casaco azul de malha. Lê o jornal e sorri.
É o velho soldado. Agora parece ter menos vinte anos, apesar da cabeça branca.
Chamei-o.
Ele desprega os olhos das letras. Olha para todos os lados, tentando encontram a origem do seu nome.
Aceno com o braço levantado que logo é localizado.
Ele sorri. Desencosta-se do varandim, atravessa as mesas e cadeiras da esplanada e entra no estreito espaço do café.
-Bom dia.
-Bom dia. Então já tomou café?
-Hoje não, estava a ler aqui o jornal...
-Então o que vai tomar?
-Pode ser um galão - Disse entre o exclamativo e o interrogativo.
-Só, não deseja comer nada? Esta sandes de vinha de alhos está divina!
-Não, carne de porco só se for criado em casa. Essa carne é mole, é criada à pressão. Perdeu o sabor. Um papo-seco com manteiga.
- Veio cedo para a cidade!
- Sabe esta foi uma daquelas noite...não conseguia dormir. Só via clarões, vultos a esconder-se dentro de valas e casamatas. Cheiro a carne despedaçada.... Um inferno.
- Foi um sonho terrível...
- Era o inferno. Acordei em angústia, faltava-me o ar... Logo saltei da cama, tomei um banho e desci. Deveriam ser umas cinco e meia.
- Tão cedo!
- A cidade é bonita a essa hora. Como é bom vê-la a lavar a cara, a pentear-se, a ganhar rosas no rosto, depois perfuma-se com os primeiros aromas humanos que a povoam, ainda fresca, respira-se a maresia.
- Acredito que sim...
Paguei e abandonámos o café.
Cá fora a cidade parecia ter enlouquecido. Magotes informes de pessoas tentavam atravessar a rua, os carros corriam ferozes, rua acima, tentando apanhar o verde...
-Tá a ver esta cidade? De manhã ela é calma, como um mar de azeite.
- A cidade parece doida de vida.Tem pressa de viver.
- Vou até um lugar mais calmo acabar de ler o jornal. Obrigado.
- De nada, até logo.
O homem enfiou o jornal debaixo do braço e rompeu, por entre os vendedores e distribuidores, em direcção à zona do Liceu.
Ainda olhei, mas a multidão engolira-o.
As montanhas azulavam-se lá no alto e o sol começava a ficar quente.
Caminhei por entre a sombra das ruas, absorto, enquanto a luz caía lá do alto breve e pura.
A cidade espreguiçou-se e nos jardins floresceram sorrisos de muitas cores e uma nova vida, renovada, após a enxurrada, encheu a cidade dum arco-íris.

8 comentários:

  1. Uma bela descrição em prosa poética. E que venha o arco-íris. Cá estou precisando de um.

    Beijos!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Obrigada por mais este texto cheio de surpresas! E, especialmente, pelo arco-íris: vi-o esta tarde e reconheci-o aqui ;)

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  4. Você descreve tudo de forma tão real que é possível vivenciar cada instante!

    Parabéns!!!
    Abraços!

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  5. Escreves de uma maneira que me sinto acompanhar-te como num filme! já vão florindo os jacarandás por aí?
    Bjs

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  6. Lindo texto meu amigo, é sempre um prazer lê-lo. Bom fim de semana e Beijo meu

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  7. Agredeço as visitas, antes de tudo.
    Lilá toda a ilha floresce, mas os jracarandás são lindos.
    Amanhã toda a cidade se vistirá de flores na sua festa.
    Depois do caos de fevereiro a promessa dos frutos erguer-se-á em sorrisos e cors pelas ruas da cidade e pelas tv's do mundo.
    Bom fim de semana.
    Bjs

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