19/10/2014

NA PORTA 171



O dia nasce dourado estendendo-se à vontade pelas encostas, orvalhadamente frescas, da cidade. Depois cresce o dia e a paisagem esbranqueia-se de cortes negros sobre as cores aguarelentas da cidade. E entrementes, na paisagem, há um poste de comunicações, um canto negro de melro, uma buzina de autocarro e o desespero dos atrasados que chegam sempre a horas, mas do relógio dum tempo que não existe.
Mais tarde uma tabaibeira ergue-se redonda e suculenta no verde selvagem das fazendas abandonadas.
E o sol cresce e sobe no céu de outono.
Agora, derrete-se no horizonte, como que devorado pelo cansaço do tempo, e logo surgem as canas, abanadas pelo vento que não passa, a dizer um adeus fingindo que o amam mais do que todas as encostas e todas as criaturas que recolhem ao ninho. Elas abicam-no para o fundo de mais um dia, rumo ao outro hemisfério.
A noite cai e uma porta abandonada da memória fala de outros tempos e do chilreio das crianças que o nunca foram, porque emigraram cedo para a Austrália.
Vejo encostada à porta, que já não existe, a figura da velha que o sopro do tempo também devorou no ocaso da existência.
Ela já partiu e não viu os filhos voltarem.
Eles a viram estendida e abnegada no esquife do seu adeus.
Talvez tenham corrido as lágrimas do remorso ou as de um passado distante que a vida não consegue recuperar, porque o tempo é apenas memória.
Ela já não está, mas os corações teimam em florir, encostados ao muro e à casa, apesar do tempo e do abandono.
O portal com a numeração está lá, as flores também, mas a ausência .... Essa está impregnada nas ervas que crescem por entre o pedrado do terreiro e os canteiros antigos de flores mortas.
A casa tem um coração clamando pela presença de ausentes. Aquela casa tem uma memória que todos os dias parte na esperança de um porto...
 Um coração abandonado floresce sempre, porque sangra a saudade da sua própria existência.

2 comentários:

  1. Vim aqui de manhã, li, achei maravilhoso, mas não comentei. Agora volto e digo: o seu texto é maravilhoso!
    Beijo*

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