15/12/2013

DAS EIRAS À VILA

http://www.youtube.com/watch?v=IU2KpZ2I2qk


São quatro e meia da manhã.
Os búzios  saltavam na escuridão das madrugadas as encostas das ribeiras e prolongavam-se nas levadas, sem água, enquanto os lençóis se voltam para os pés da cama e uma interior alegria antecipava a Festa. Eram as missas do Parto que começavam bem cedo.
A malta das Eiras começava a encontrar-se um pouco antes do Ribeiro da Mouca e dirigia-se ao Lavadouro que se encontrava um pouco abaixo da saída da vereda das Eiras, no caminho do Janeiro. O grupo ia engrossando e logo abaixo, no Chão da Tasca, já se ouvia as afinações e algum reboliço no Largo de Bailhinho, onde a Vereda do Troca se inicia. Era aí que o ^José Moleiro deixava a "fragonete". Um Peugeot 403, cuja matrícula, se não me engano era MD 42-02. Naquele tempo os carros eram poucos.
Um foguete sinaleiro dizia que os instrumentos estavam afinados e que o brinquinho ia arrancar, caminho do Janeiro abaixo, entre o som do acordeão do Gil da Branca e do Zé do Martinho, a flauta de cana do Maneta, os rajões do Ângelo e do Trinta Reis e as rebecas de cana de quem as quisesse tocar, as castanholas e pinhas e até os calhaus serviam de marcadores de ritmo e de lenitivo na descida sem luz da atual rua do janeiro. Pequenos e grandes, em romaria de fascínio, caminhavam rumo à vila. Rumo à igreja, onde o enorme padre Gabriel, na sua voz de tenor começaria a ladainha em latim. Eu não percebia nada daquilo, mas respondia em coro como o meu pai. Quem estudava Latim? Muito poucos! As escolas eram ainda muito poucas. Quase sempre junto da casa da professora e propriedade da família . Eu estudava no Externato de S. Lourenço, na Terça, outros porém frequentavam escolas públicas em que os rapazes tinhas salas separados das raparigas. Havia a das Levadas, austera como o Estado do país de então, mas o percurso era perigoso, e as rivalidades entre os sítios nada aconselhável. Não que se vivesse em guerra, mas  era sempre bom estar mais perto da família.
Mas regressemos ao folguedo das missas que começavam sempre "Kirie eleisson" e se prolongava até ao Agnus Dei., numa melodia que toda a assembleia acompanhava num atropelo da língua de Cícero, mas que a devoção perdoava. Nos confessionários as filas de penitentes estendia-se ao longo da parede branca das naves laterais, onde figuras de demónios povoavam o teto de madeira, e assobiavam  de cara torcida, apesar do  som harmonioso e agradável do velho e carunchoso  órgão do Côro  encher  o templo de musicalidade festiva.
No fim vinha sempre a canção Missa do Parto, que todos cantavam, mesmo sem saberem o que diziam, mas a festa era tanta, os chocalhos, as castanholas, as sinetas   e o vínculo do desejo do Natal de tal ordem que todos a afinavam na vontade e no ritmo e na ordem natural da alegria que tudo harmoniza e liga.
À porta já estavam os brinquinhos de vários sítios para alegrarem a pacatez da vila e encher os bares  de hoje que na altura não passavam de tascas, sem os pruridos da salubridade, mas que tratavam os seus clientes com muita estima e consideração. Entre um despique e um copo as coisas aqueciam e o frio da manhã não tolhia a originalidade do improviso, havendo sempre uma ou outra mulher , mais afoita, que não se coibia de atirar a sua quadra e de entrar na dança das palavras e do corpo de roda que os vários brinquinhos alargavam.
Todas a s madrugadas os búzios roncavam sonoros pela escuridão das matinas e os foguetes  acordavam os garotos sempre apreciadores  de novas galhofas. O que custava era sair do quentinho da cama, mas, ao contrário de hoje, a luz era mortiça e de petróleo e havia que recolher  precoce  e um cedo erguer fazia crescer...  Depois de atiradas umas mãos de água fria  à cara, queriam era saltar como cabritos ao ritmo do brinquinho, que descia o escuro caminho de pedra,   seguindo um "cezico" de petróleo que o Ligeiro  ou o Galvão levavam, cerimonialmente, como luzeiro.
Durante nove dias a novena à Senhora do Parto acontecia na mesma alegria  e no crescente desejo do que cairia no sapatinho.

2 comentários:

  1. Bom dia Jordas
    É tão doce recordar e trazer para terreiro estas passagens que nos ajudaram a crescer sem muitas vezes entender nem a linguagem nem os gestos.
    Parece que nos perdemos por aqui.
    Desejo-te Boas Festas
    Que 2014 seja bom ara todos

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  2. Olá Luís,, é bem verdade que os melhores gestos são aqueles que nascem justamente da espontaneidade das coisas. As recordações desse tempo em que tudo era possível e grandioso, apesar de pequeno, tornava a vida das crianças sublime e intensamente ligada à terra.
    Um abraço e Um Feliz Natal.

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