17/04/2012

EM MEMÓRIA DAS VIÚVAS DOS SOLDADOS MORTOS EM ÁFRICA


O velho soldado descia a saudade da juventude e buscava entre os farrapos da memória dias de sol e sorrisos de esperança, mas o horizonte era cinzento e distante. Os clarões profundos da savana africana estavam lá entre lágrimas e sangue e dores de companheiros e cadáveres da pátria amada. O velho sentou-se e relatou:
- Jurámos bandeira, perfilhamos como uma verdadeira máquina bem treinada. Aquele foi um dia lindo. Estavam lá as nossas famílias e muitos já tinham mulher e filhos até.
Juramos defender a Pátria - disse com raiva contida - e cumprimos, ao contrário desses que A andam a vender aos talhões. Esses que nem conhecem o hino nacional, nem a História do país. Mercenários!... E o qualificativo reprimiu-o na garganta a custo.
Jurada de amada de braço erguido e cumprindo a promessa fomos na vontade do que os outros queriam.
O dia da partida entre abraços e choros e lenços, o meu amigo Freitas subiu a escada do Príncipe Perfeito à minha frente sorridente. E o último beijo da mulher prolongou-se no ar da viagem, como um rasto de regresso aos braços da amada e do filho nascido havia uma semana.
Mas África foi apenas uma miragem. A Pátria uma selva de armadilhas, onde morrer era o menor dos castigos.
Os dias passaram longos e duros como se em África os minutos fossem anos. Mas África é a terra das bênçãos. O sol sempre tão rubro. A luz sempre tão intensa como explosões de vida e balas de morte.
África ficou lá onde o beijo se perdeu numa emboscada e o que se ouviu foi o choro do filho no colo da amada. Distante como um grito de saudade e tão perto como um fogo que nos rasga a carne.
A bala acertara-lhe na perna, junto à virilha e o osso estilhaçou-se como um torrão ao sol do Estio. O céu escuro iluminou-se de estrelas e a última imagem foi o branco lenço da amada protegendo o rosto do filho no cais de embarque.
Ficámos debaixo de fogo, entre o capim que tombava às saraivadas das rajadas de metralhadora, e nos escondia imoveis pelo medo.
Ao meu lado, o Freitas estava frio e exangue. O apoio chegou no dia seguinte. Fomos evacuados e os mortos recolhidos em sacos como lixo.
Aquele dia senti-me impotente e apenas supliquei que ele morresse depressa. E duas lágrimas escorreram do rosto vincado de dor. Ele elevou o braço e limpou-as como se os rios cavados por outras dores no seu rosto cansado e injustiçado não as pudessem conter.
Quando cheguei falei com a viúva. Era uma mulher envelhecida pela dor e pelo escuro da viuvez.
Conservava dentro duma caixa o telegrama que chegara a casa. "Morto gloriosamente em combate. A Pátria agradece o supremo sacrifício do seu filho".
Ao pegar-lhe, um rio nasceu da esperança perdida. Ela não sabia o que dizer e a criança, agora com três anos e que saltitava nas pedras do terreiro, descalço e seminu, como se nada tivesse mudado.
- Aqui está o que me resta do António. Uma medalha sem glória e um filho para criar. - E uma raiva contida e já cortida pela dor, enrubesceu-lhe a face, outrora lisa e rosada de mulher feliz.- Um mês depois chegou o corpo encaixotado, como uma encomenda que se manda pelo correio. No dia do funeral aparecem galões e um pelotão no cemitério. A freguesia prestou a última homenagem. A banda tocou uma marcha triste em honra do seu antigo trompetista, entre lágrimas e lamentos.
Um capitão entregou-me esta caixa dizendo que era uma condecoração. E lamentou a perda do meu António.
O sol estava ainda forte. Os dias tinham crescido, mas à sombra Abril ainda é fresco e o velho levantou-se dizendo:
- Nunca mais falei com ela. Vim a saber que embarcou para o Brasil com um familiar e que lá refez a sua vida.
E andando rua acima disse com o desconsolo de uma vida perdida e inútil:
- Uma salva de tiros e sepultaram-no. O soldado ficou plantado junto ao alto cipreste ao lado da capela. O Freitas era uma jóia de rapaz. Sempre muito certinho. Nunca se meteu em aventuras. Nunca nos acompanhou nas loucuras do cabaço ou bebedeiras. O Freitas não merecia morrer!.. E a voz sumiu-se na tarde como gota em terra ressequida. Depois continuou. Colocou a mão ossuda e larga no meu ombro - O coveiro delicadamente padeja a terra fértil sobre o caixão não vá o morto perder o barco de Caronte ou o Letes ficar sem correnteza para o esquecimento.
Um carro da tropa desceu a rua e ele acrescentou, seguindo-o com o olhar.
- A Pátria hoje está entregue a mercenários. Eles não juram bandeira. Eles juram ao dinheiro que lhes pagam… já viu o que recebíamos por defender a Pátria que estes Filhos da ... estão a matar e nem querem reconhecer o nosso sacrifício.
Já pensou quantas famílias receberam apenas uma condecoração? Já pensou nos braços que apenas tinham um órfão para abraçar e nos vestidos pretos e nas viúvas da nação? Os políticos fizeram por esquecê-los todos e deixaram ao vento do esquecimento a homenagem e o direito que lhes é devido.
Um país que abandona os seus filhos nunca chegará longe!
E o velho soldado sentou-se na última réstia de sol  esperando alguém que chegou pouco depois.

1 comentário:

  1. Li atentamente este seu texto e subscrevo.
    Podia ser uma dessas viúvas, pois meu marido
    também esteve em África, mas felizmente não sou.
    Um abraço
    Irene Alves

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