Ela estava lá. Ao fundo do terreiro calcetado de pedra partida, atapetado de verdes esperanças, sob o chapéu-de-chuva ou de sol. Falava com os seus botões solitários de esperança, no poente da existência. Há um ano encontrei-a à porta. Hoje ao fundo ou no fundo do desterro da própria casa. Só!
As janelas vestidas de verde estão fechadas à luz dourada, a alegria azul do céu ou mesmo ao canto da brisa que sopra, amena, da serra.
A cor das paredes há muito que perdeu a vida e mirra numa tonalidade de lamento sentido, como o eco dum choro de menino que se derrama num vale profundo.
Os corações estão à entrada e espalham-se pelo terreiro. As campainhas pendem, amarelas, do outro lado, sobre os assentos de macadame, onde amamentou e aninhou os filhos, outrora ninho de chilreios de crianças. Os brincos de princesa deixaram de enfeitar as orelhas das crianças ou o cabelo das meninas e hoje carregam de frutos: os mimos que ninguém come, nem admiram. A velha está seca de mimos e faminta de os receber. Acho que até está faminta de dá-los, mas ninguém os aceita. Ninguém tem tempo pra ouvi-la. Apenas as ervas do terreiro ouvem o seu lamento, apenas os corações escutam as suas estórias de homens fortes que cavaram passadas na rocha e subiram a arriba e cruzaram as serras, levando nas redes os doentes e os senhorios. Só o pessegueiro escuta as estórias das meninas casadouras dadas pelo rei a um tolo, ou a estória de João de Calais. O abacateiro lembra das pancadas que levou do bordão cansado, e logo frutificou no ano seguinte como se o bordão da velha tivesse a arte mágica da bengala do Filho de Ferreiro que pesava sete quintais e meio e fazia tudo o que o seu dono lhe pedia.
Os assentos guardam tantas histórias gravadas na voz calma que adormecia as muitas crianças que pariu, sem a ajuda de médico, no quarto da casa onde a dor abafava os gritos que sufocava na garganta pela alegria do choro do nascido.
A Pereira cresceu muito, é tão velha como ela, mas todos os anos enche-se de frutos. Nela, há muito que secou a esperança de tê-los, mas, pior que isso, já nem os olhos têm a esperança de vê-los. Partiram e a velha vive no esquecimento de um número. 171. Caricato! É o número perfeito para uma porta, onde a caixa do correio é verde de desesperança, onde as teias de aranha dizem que os envelopes se perderam pelo caminho e o seu tamanho é grande para as novidades e demasiado pequeno para a saudade.
O velho pessegueiro teima em sobreviver à lepra e aos fungos da velhice, como ela, mas todas as primaveras está florido de róseas flores. Depois vingam alguns pêssegos que se tornam suculentos e aromáticos com o estio. Ela não se renova de flores, apenas os corações rubros e avermelhados da entrada lhe enchem a alma do que já foi. E a sua saudade ganha uma cor de sangue. O sangue dum coração de mãe, tão repartido como os muitos corações que caem em cachos de flores encostados à fria pedra de basalto que sustem a casa velha de negra solidão.
A velha estava lá.
Aquele quadro era uma janela sobre o futuro.
Avancei terreiro adentro. Colhi uma flor entre as muitas que floriam e ofereci-a com o beijo na face. Ela levantou a face enrugada e um sorriso enfeitou-a de grinaldas de luz. Uma lágrima correu pelos cansados vales da sua pele e disse:
- Esta flor cheira tão bem. Vivo aqui a sessenta e seis anos e nunca tinha provado o seu cheiro. Cheira a saudade!
Mais uma personagem tão bem desenhada! E uma história repleta de outras histórias a pedir que sejam contadas. Gostei muito de ler, apesar de tão cheia da tristeza da saudade.
ResponderEliminarBravo! isso sim é uma crônica. Com tudo o que se vai, mas com tudo o que se vem. Cheira a saudade, porém verde na memória de que faz!
ResponderEliminarSaudade tenho eu de ti, meu amigo!
Beijos Jordas***********
Que coisa passo! Mas calma e forte, como nunca pensei que pudera ser. Quer dizer, nem tanto assim, mas não reclamo, só pra ti, de vez em quando,
Talvez eu não te tenha amado
Tanto quanto eu poderia
Talvez eu não te tenha tratado
Tão bem quanto eu deveria
Se eu fiz sentir-te em segundo plano
Desculpe-me, eu estava mentindo
Sempre estiveste no meu pensamento
Sempre estiveste no meu pensamento
E talvez eu não te tenha abraçado
Em todos aqueles solitários momentos
Acho que eu nunca te disse
Que sou tão feliz porque me *pertences*,
Eu devia ter feito e dito pequenas coisas
Simplesmente nunca aproveitei o tempo
Sempre estiveste no meu pensamento
Sempre estiveste no meu pensamento
Diz-me, diz-me que o teu doce amor não morreu
Dá-me, dá-me só mais uma chance
Para agradar-te
Eu te agradarei
Eu devia ter feito e dito pequenas coisas
Simplesmente nunca aproveitei o tempo
Sempre estiveste no meu pensamento
Sempre estiveste no meu pensamento
Willy Nelson
@ trad. deliberamente intromissiva da Renata
Bom Fim de Semana, amigo,
Renata
Obrigado, Renata.
ResponderEliminarAdorei a tradução intromissiva.
Há pessoas que sempre acupam o nosso pensamento com aromas e cores e flores...
Bjs
Eu conheço este lugar.
ResponderEliminarFica nos Prazeres junto ao Chico?!
Também já falei com a senhora.
Com o tempo ...
ResponderEliminarLéo Ferré
Conforme o tempo passa, tudo vai
E parece um cavalo perdido branqueado
E sentimo-nos presos em uma cama de azar
E se sente sozinho não pode tão doloroso
E um se sente traído pelos anos perdidos
Então, realmente ... com o tempo ... nós fazemos mais
É pra ti, tradução da Rê.
Beijo amigo Eu quero e fico contigo.
Bom Fim de Semana
Olá.
ResponderEliminarAlém da grande sensibilidade do blog "A POESIA ANDA NA RUA", simplesmente Amei este blog.
Linda crônica repleta de nostalgia, escreve com o coração, lindo demais!
Parabéns, pelo excelente trabalho e lindo blog.
Sempre grata e honrada com sua visita, volte sempre que desejar e será sempre bem vindo.
Estarei acompanhando seu trabalho com muito carinho por aqui também.
Linda noite!
Um abraço.
Marion
Tenha um Bom Dia, Jordas.
ResponderEliminarBeijo amigo.
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mario Cesariny
Renata
Obrigado a todos pelos comentários encorajadores!
ResponderEliminarSeu conto fez-me refletir, em quantas velhinhas não haverá por ai perdidas, que a única coisa que esperam, pode ser um beijo e uma flor, pois o monstro da indiferença,não deixa de as acompanhar, e noutros a vergonha esta velha que pode importar, esquecem que mal acabamos de nascer é para lá que vamos. bj
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