24/07/2010

TI ANTOINO MANEIRINHA

António Araújo Sol foi o nome que lhe puseram na pia baptismal.
António em honra do Santo, Araújo nome do avô materno e Sol do avô paterno.
No sítio das Eiras o nome dele era Ti Antoino Maneirinha.
Maneirinha advinha da sua mestria manual para mil e um ofícios. O homem não sabia ler nem escrever, melhor, escrevia o seu nome em letras de imprensa. Vi-o assinar com a navalha afiada no bordão de faia o seu nome completo.
- Bom dia ti Antoino. Dizia o povo ao passar.
- Deus nos dê, respondia tirando a barreta castanha de muitos sóis, ou o barreto de lã de ovelha, já de orelhas caídas, curtidos do vento serrano, e da resina dos pinheiros que cortava de serrinha ou a brado de machado à conta do João Barrancas. "Porque no poupar é que está o ganho".
O homem era um mestre a preparar a lenha de conta, O corte e desbaste dos pinheiros era uma arte de manter a floresta arejada, saudável e defendida dos fogos.
Nessa altura, mais ou menos há trinta para quarenta anos, as serras da Madeira raramente eram fustigadas por incêndios. Toda a produção silvícola era aproveitada, quer para a queima nas padarias, quer para a cama do gado, quer para a fertilização dos solos agrícolas. Hoje elas estão embardadas, cheias de faúlhas e silvados. As veredas e levadas desapareceram, e o eucaliptal, as acácias e outras infestantes de crescimento rápido, ressecam os solos e prestam-se a explosivos pastos de fogos.
Era vê-lo acompanhado do machado sempre preso ao ombro, a barreta a tapar a calva e pequena cabeça do sol, e o seu casaco velho, mas companheiro, no sobe e desce diário do Cabeço do Barreiro à povoação.
Ao fim da tarde, na mercearia do sítio, chegava sempre com a reverência dos mais novos e o respeito dos homens de barba rija que o cumprimentavam com a vénia dum experiente e respeitado ancião.
Cumprimentava de forma cavalheira e jovial as poucas mulheres que iam àquela hora à mercearia comparar massa de cabelo, entre fina ou grossa, macarrão ou arroz entre outros bens, todos avulso, aviados na hora, pelo João Poncha, sempre de lápis atrás da orelha e pesados na balança branca com ponteiro vermelho de precisão, uma Avery que pesava até 10 quilos. Tudo o que fosse mais rudimentar era pesado numa balança decimal, cujos pesos aferidos estavam bem acomodados numa caixa para o efeito.
Enquanto a canalha se debatia no terreiro, fazendo girar os bidões de petróleo com as canelas cheias de genica e equilíbrio juvenil, ele sentava-se na cadeira, única da mercearia e combinava as tarefas para o fim-de-semana: As exertias, o castrar (capar) dos bácoros, as podas das árvores, o abate de animais domésticos... os cestos a serem modelados... as encomendas de lenha ou mato.
Era um matemático perfeito. Não precisava de registo das tarefas, nem de lápis para fazer os preços. Aquela cabeça era uma calculadora.
Muitas vezes desafiava com enigmas os mais jovens e depois esperava a solução dos mesmos.
Os homens, sobretudo os agricultores, que eram na maioria os daquele sítio, questionavam-no sobre as podas, as plantações e o tempo. Neste particular, não sei como fazia, mas a sua palavra era mais que previsão. Era certa!
Vivia numa casa de palha, antigo estábulo da casa de veraneio dos fidalgos da Quinta Grant, ainda hoje o local é conhecido pela Quinta, apesar da antiga casa senhorial estar em ruínas, onde conhecera a sua primeira mulher de quem teve uma filha, depois enviuvou e voltou a casar. Desse casamento teve duas filhas e um filho. A casinha era coberta de colmo, com um peitoril que dava acesso ao andar de baixo por uma escada negra de basalto, que conduzia a um terreiro, enfeitado com uma parede de reboco grosseiro, pintado de rosa velho, onde duas portas acediam ao interior das lojas de terra batida, ex manjedoiras de cavalos.
Junto à parede cresciam uma begonaceas que nós conhecíamos por corações e cujas flores bem vermelhinhas tinham um sabor ácido. Um dia de Inverno um raio atingiu a cumeeira e o pano lateral de colmo fazendo ruir uma das paredes e parte da cobertura. Antoino Maneirinha teve de ir viver para um quarto na casa da irmã, onde veio a falecer anos depois.
Apesar de todas as agruras da vida e das contrariedades, era um homem dum sorriso franco e aberto. Lembro de o ouvir dizer, quando certo dia no diário, após a revolução dos cravos, se falava do trabalho infantil, fazendo o artigo a condenação do mesmo:
-Dizem que trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é que é louco.
Logo depois acrescentou:
- A melhor forma de aprender é fazer, se os fedelhos não trabalharem como é que vão aprender? De boca? Ta ficando tudo louco ...
Em mim ficou a marca do seu cumprimento:
-Deus nos dê!

Na foto, já muito gasta pelo tempo, tirada na oficina de tanoeiro do Domingos estão:
 António de barreto de orelhas,
O genro Miguel de chapéu,
O genro Manecas com o garrafão,
O Filho Manuel segurando o copo
O cunhado Domingos.
Apenas o Manecas está vivo.

8 comentários:

  1. Gostei muito! Já estava à espera de gostar, mas gostei ainda mais do que esperava, o que não é fácil qd a expectativa é já alta. Acho que a Agapê e eu nos vamos ter de associar para tratar do teu livro de Contos ;)

    ResponderEliminar
  2. ...Jordas,
    o que seria da vida se não houvessem
    as lembranças de tempos vividos
    e que tantas saudades nos trazem?

    adoro teu jeito de brincar com as
    palavras, dando-lhes vida em cada
    letrinha composta.

    deixo carinhos e bj, desde
    um Brasil que ama teu Portugal...

    ResponderEliminar
  3. Bom dia Amigo
    Que maravilhoso se torna lembrar figuras da nossa terra e do tempo das nossas meninices.
    Comparativamente eles não tinham nada e eram mais felizes que nós somos hoje.
    Os meninos aprendiam a trabalhar e nenhum sofreu traumas nem se sentiu mal por isso.
    Era preciso ajudar e quem queria viver melhor tinha de trabalhar um pouco mais.
    Um abraço por tantas recordações.

    ResponderEliminar
  4. Lindas lembranças, lindas histórias que vale a pena recordar.
    Bjs

    ResponderEliminar
  5. Maravilhosos amado.
    Engraçado,eu entrei aqui e me deu uma enorme saudade.
    Parabéns.
    Um beijo grande e uma linda semana.
    Beijokas.

    ResponderEliminar
  6. Simplesmente maravilhoso! Vida vivida! Não existe maior Beleza, por mais percalços que tenhamos, não é, meu amigo querido?

    Plante seu jardim
    e decore sua alma,
    ao invés de esperar
    que alguém lhe traga flores.

    E você aprende
    que realmente pode suportar,
    que realmente é forte,
    e que pode ir muito mais longe
    depois de pensar
    que não pode mais.

    E que realmente
    a vida tem valor
    e que você tem
    valor diante da vida.

    Shakespeare

    Bons dias!

    Renata

    ResponderEliminar
  7. Olá, meu querido! Vim desejar-lhe o melhor no Dia De Hoje. Deus abençõe o seu pai que o criou tão bom!
    Um beijinho enorme****
    Gosto muito de você, saiba disso. Não venho muito porque não estou muito bem.

    "O valor das coisas não está no tempo em que elas duram,
    mas na intensidade com que acontecem.
    Por isso existem momentos inesquecíveis,
    coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis".
    Fernando Pessoa.

    Bom fim de Domingo.
    Renata

    ResponderEliminar
  8. Olá amigo; voltei muito tempo depois de ter lido a crónica só para dizer que gostei imenso; às vezes esqueço-me de to dizer. Já sinto saudades dos almoços que não vamos fazer, das conversas que não vamos ter. Felicidades na nova escola.

    ResponderEliminar