07/07/2010

FOI O SOL QUE ME CRIOU

João Vieira era um homem franzino, pernas arqueadas pela infância penosa e pelas cargas suportadas, mas tinha  um olhar de mel, cheio de simplicidade iluminando o rosto crestado do estio e da vida. Era vê-lo descendo a vereda mal calcetada que ladeava os poios ou pulando os barrancos de erva que sustinham a terra, ora de foice na mão, ora de enxada, mas sempre alindando as curtas courelas, donde arrancava algumas batatas, o milho, o feijão, o vinho e outras hortaliças.
Em Fevereiro o podão tocava uma melodia muito própria, quando ele, aproveitando a sombra dos dias em crescendo, cortava as poucas videiras. Depois em Maio, usando canavieiras fortes, fazia estacas e, penteando os bacelos, os entrançava presos com espadaneiras, descobrindo os bagos dos promissores cachos.
Recordo os dias em que cavava a terra para as semilhas ou o feijão, devia ser por fins de Fevereiro e principio de Março, pegando numa gasta enxada de bico, calças arregaçadas e presas por um baraço de bananeira, acima dos joelhos, porque a fazenda era cara e a roupa do cote só era lavada ao sábado à tarde ou ao domingo, assobiava, acompanhando as canções que uma velha rádio de pilhas da minha tia tocava rancheiras argentinas e músicas do Teixeirinha.
Vivia numa casa coberta de colmo, com paredes de pedra aparada,  rebocadas de cal branca.  Um terreiro de saibro, embelezava-se com a velha roseira  da entrada, e estendia-se ao comprido e acabava no chagão. Duas lages serviam de assento, onde nas tardes de estio as filhas e a mulher bordavam, longas horas, a paciência do pano de linho que iria atravessar os mares. A cozinha ficava separada, e a casinha ficava ainda mais longe, mesmo junto do galinheiro e do curral das cabras e do chiqueiro onde criava um porco preto. Era uma casa muito simples e pobre.
era um tempo em que a honra e a honestidade eram valores maiores que a riqueza e que ser pobre era um destino e não uma vergonha.
Aos domingos ia à missa, a primeira, celebrada pelo enorme padre Gabriel, pelas cinco da manhã ou seis, de roupa lavada, mas descalço. Não recordo de ver sapatos ou botas nos seus pés.
Pela festa do Espírito Santo, na enorme mesa de castanho da sacristia, tinha a esmola da mesa do Império: Um saco com alguns víveres que atenuavam a sua raquítica e descalça sobrevivência. Aquela mesa dos pobres da paróquia era linda. Os pães eram especiais e maiores, tinha algumas guloseimas e bandeirinhas vermelhas de papel com a pombinha branca, símbolo da Trindade. Depois da morte do padre Gabriel, a festa da mesa acabou, mas o Vieira já morrera.
O Senhor João Vieira morreu numa tarde de Primavera, depois de algum sofrimento com uma dor no peito. Diziam que tinha um bicho no pulmão.
Dois dias antes de morrer, já bastante abatido, ainda desfolhava a vinha, atrás do palheiro do meu avô. Lembro de ter pedido:
- Jordão, tens um cigarro?
-Tenho, mas não devias fumar.
- Não negues um pedido meu, pode ser o último.
O meu avô tirou da algibeira da camisa um cilindro com muitos cigarros,sem filtro, enrolados por um papel com uma caravela e juntos com um elástico, e ofereceu-lhe um.
-Sabes, Ganço - este era o alcunha do meu avô, herdara-o da mãe, a Maria Gança – eu estou acabado, mais dia, menos dia o Dr. Cova vai-me dar cura.
- Cá nada, Vieira. Respondeu pouco convencido o meu avô.
- Não tenho dúvidas, esta manhã nem tive vontade de comer. A Efigénia e a minha filha Madalena não me queriam deixar sair da cama… Eu ainda não estou morto! E vir à fazenda. Isto dá-me vida.
- O vizinho devia ter mais cuidado, este sol é enganador.
- É o sol, a água e o ar que cria as plantas. Comigo é igual. Serei uma planta ou outra coisa qualquer. Foram elas que me ensinaram a vida. Foi esta terra que me deu o pão.
Depois de terminar o cigarro, tossiu e tossiu e tossiu.
O ar parecia tê-lo afogado. Sentou-se no barranco de erva macia, e logo o meu avô chamou uma das filhas que o veio buscar e levou para casa, depois de o ter repreendido.
O sol estava a pino e o meu avô desceu para o almoço.

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4 comentários:

  1. Bom dia Jordas
    Mais um presente nesta madrugada. Bonito de se ler e seguir por ainda fazer parte desse grupo de pessoas que viveu no meio desses pobres de Cristo agarrados à terra sem nada mais que um triste cigarro que o comia lentamente.
    Expressivo e com laivos de quem experimentou ouvir na primeira pessoa algumas frases como:
    " O Dr Cova vai dar-me cura..."
    "Jordão tem um cigarro ?"
    Viajei no tempo e revivi tantas cenas do nosso quotidiano.

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  2. Linda história para ler logo de manhã e pensar no quanto a vida mudou. A nossa ligação à natureza não é mais a mesma, a dureza da vida, a simplicidade e o aceitar resignado da morte, a amizade sincera dos vizinhos também não ... tudo se transformou noutra coisa que nem sabemos bem definir, mas que nos provoca algum vazio no peito, vazio que se enche ao lermos este texto. Lindo...

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  3. Fiquei com vontade de chorar. Lembrei-me de outros Vieiras e de outros cigarros e de outros sóis amarrados em canudos e guardados dentro da vida. Foi o sol que criou tanta da nossa gente...

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  4. Ia fazer a lista das imagens de que mais gostei, mas acabaria por escrever mais do que suporta um comentário ;) Parabéns! Espero que durante estas férias o livro se comece a compor ;)

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