10/05/2010

REGRESSO

A cidade estourava de gaitadas e cachecóis vermelhos. A luz da tarde, quente e áurea, estendia-se, doce e preguiçosa, pelos jacarandás prenhes de flores, pelos pinheiros da tamara, pelas figueiras da índia, e beijava o cinzento aveludado dos montes. O velho passeava, curvado, pela avenida, absorto de tudo. Parecia indiferente ao alarido da rua e aos festejos do campeão, arrancado a ferros na última jornada do campeonato.
O velho soldado caminhava como quem não tem motivo para festejos, mais preocupado com nada ou com tudo. A sua memória está triste e negra de outros ocaso, com muito alarido, muita luz, mas pouco sol.
A aragem da tarde amenamente se insinua nas primeiras e tenras folhas das árvores da avenida. Aqui e ali, entre a calçada do passeio e os muros, floresce uma erva simples e esquecida dos herbicidas camarários. O velho senta-se no muro de pedra aparada e afaga com ternura de mãe uma flor amarela, depois, apercebendo-se do carrario que entope a avenida, esboça um sorriso sombrio e murmura:
– Tanto gasto, tanta energia perdida. Amanhã a gasolina aumenta. Este país não tem conserto, mas parece ter muitos concertinos. Será que as agências de rating darão mais uns creditosinhos? Se fosse para trabalhar, todos alegariam direitos…
Depois, meneando a cabeça, branca e de cabelo cortado à escovinha, ficou olhando as luzes a piscar, os festejos perigosos de pessoas, como hastes, crescendo e explodindo, pelas janelas das viaturas. Eram de uma euforia nunca vista. Afinal o SLB regressava à galeria dos campeões.
Levantou-se, algum tempo depois. Caminhou, vagarosa e ausentemente, entre os carros parados, apoiando-se nas frentes de alguns, atravessou a rua, fora da passadeira, atingindo o passeio oposto. Subiu o Beco Paulo Dias e parou, onde costuma parar. Sentou-se e, levantando o olhar, apreciou a elegância dourada do melro preto no fio eléctrico.
Puxando de algum folgo assobiou. O melro respondeu, mas depois voou no cinzento da tarde, quase noite. As luzes da rua espalhavam a sua luz que, como pequenos sóis, alongavam o dia.
A noite caiu, o velho regressou à escuridão da memória e os festejos continuaram.

6 comentários:

  1. Gostei de tudo, do princípio ao fim! O teu soldado-leitor tem razão no que diz, mas gosto ainda mais do percurso que vais fazendo com a tua escrita, acompanhando-o nas suas deambulações pela cidade... E gostei da parte do melro preto: reconheci-o pelo canto! Não pares de escrever, mesmo que não queiras publicar em livro... Thanks ;)

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  2. Muito bom Jordas....

    belíssimo texto...por vezes eu observo pessoas assim, alheias...meio que em seu próprio mundo...as vezes, eu mesma sou assim...

    Um beijo e ótima semana!!

    Reggina Moon

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá Jordas!!

    Muito obrigada pela visita no meu blog! É ótimo saber que alguém que escreve crônicas tão belas qt as suas goste de alguns pensamentos a que me faço referência!

    E no fim se regressa à escuridão da memória... que frase marcante... todos já passamos por isso, creio eu, e quer saber, as vezes é muito bom ficar alheio, observar e relembrar as loucuras dos que nos cercam...

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  5. Maravilha!
    Muito bom ter vindo aqui.


    Até mais.

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  6. Jordas, gostei muito da crônica escrita com leveza, sentimento e beleza. Obrigada.

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