14/03/2010

VIAGEM AO PASSADO

A tarde está amena.
São dezoito horas. A rua pulula de carros, autocarros cansados e apinhados de gente. A cidade ainda está recuperando...
O vento verga os jacarandás, e na esquina uma roseira brava teima em florir.
Venho do trabalho.
Foi um dia cansativo.
Lidar com pessoas não é fácil. Acabamos por nos envolver nos seus problemas. E os problemas delas passam a ser também nossos.
Subo a Avenida do Infante. As árvores, de troncos lavados, parecem mais jovens. Os seus braços despidos erguem-se em oração vespertina, sobre as trevas do asfalto. Passo por pessoas apressadas, olhar distante e sombrio. O céu está ficando cinzento-escuro. A brisa, que há pouco era agradável, torna-se fria. Sinto-a a chegar aos ossos.
Estico a passada.
Chegando ao Casino, viro à direita, subo a rua do Jasmineiro.
Tombam dos muros das quintas malvas floridas, buganvílias de muitas cores, e até, num jardim recuado, nêsperas douram a copa da nespereira jovem e arredondada.
Devem ser docinhas pensei com os meus botões.
Logo à memória me vieram as tardes passadas nas árvores do meu avô Jordão, num terreno que ele possuía, e que nós chamávamos de ribeiro. Era lá, no poio, cuja parede amuralhava a linha de água que ele tinha um renque de nespereiras. Umas mais doces do que outras, é certo. Mas havia duas que tinham mel. Uma que ele dizia ter trazido da Ribeira da Boaventura, duma fazenda em que foi vigilante e onde hoje se encontra o parque aquático. Esta era a mais velha e mais frondosa. Deitava os seus ramos para o alto e para o lado do ribeiro. Com feito podia fazer de ponte para a outra margem, onde o tio João tinha um velho e enorme castanheiro, que no tempo deixava cair castanhas enormes dos ouriços arreganhados.
A outra era mais nova. Ele não sabia como viera para ali.
-Nasceu e fui deixando crescer, depois deu um cachopa, provei e eram doces. Como ficava na partilha deixei. O Abel também não se importou e ela cresceu aí.
Subir às nespereiras exigia alguma perícia: Saltar e apanhar o primeiro galho, depois baloiçar e ganhar impulso para o segundo, e trepar degrau a degrau até à ponta e observar, deliciado na nossa ingenuidade, o dourado dos frutos, escolhendo os mais maduros para uma merenda, nas tardes já longas de Março.
Era à tarde que íamos, de assalto àquelas bandas, como ladrões de coisa própria, quando regressávamos da escola, já alpardinha, e as sombras das acácias do Joaquim metiam algum medo. Galhofávamos recostados num ramo, quais heróis de palmo e meio.
Quando o avô nos surpreendia, não gritava, nem se mostrava aborrecido. Apenas dizia, retirando o velho chapéu puído:
- Não estraguem os ramos, se querem mais para o ano!
Depois, utilizava um gancho feito de madeira, ou de ferro e prendendo os ramos mais baixos, puxava-os e comia as nêsperas com ar de satisfação. Outras vezes levava um açafate, que nos pedia para ajudar a encher.
Era uma infância feliz, ligada à terra e muito saudável.
Como eram deliciosas aquelas nêsperas bem madurinhas e quase passadas.
Um barulho de crianças fez-me cair das nespereiras.
Eram meninos que treinavam no polidesportivo e outros que chilreando saiam da escola dos Ilhéus.
Junto do portão, ornado de rosas vermelhas um cão ladrou.
Os carros passavam rotineiramente, parando e fazendo saltar as crianças para os bancos traseiros.
-Boa tarde!
Quase saltei desprevenido.
- Boa tarde para si. Como está?
-Como sempre, estudando o mundo.
-E tem aprendido muito? Questionei, entre o irónico e o apressado.
-Muito pouco, por isso eu estou aqui observando as crianças. Aprende-se muito com elas.
- É bem verdade. - Deixei escapar.
- Em África, quando regressava do mato, para algum tempo de descanso, ia até uma escola, a pouca distância do quartel e ficava vendo as crianças negras e brancas brincando no pátio, à sombra das acácias floridas e das mangueiras.
- Esse foi um tempo bom?
- Se foi bom!
Umas pingas grossas desceram, repentinas e impertinentes.
-Tenho que andar. Abrigue-se ali na entrada da RDP.- Aconselhei.
- Vá, não se preocupe comigo, já passei por muito e pior que chuva. Dói é a ingratidão...
Desatei a correr, pois estava perto de casa.
As pingas agrediam-me o rosto, frias como agulhas.
A tarde estava acabada.
 Um fio de água, serpenteando, começou a correr na berma da estrada.

22 comentários:

  1. Sabes que, quando tu caíste da nespereira, eu também caí ;) Sinal de que tinha sido levada pela tua crónica para tão longe... Gostei! Obrigada!

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  2. Oi Jordas
    Cliquei nas nêsperas pra ver melhor e conheço-as aqui só que popularmente , chamamos de ameixa japonesa ou simplesmente ameixa silvestre. É como fruto de quintal com pouco valor comercial, eu acho , porque quase nao se vê. Mas já experiemntei e são gostosas quando madurinhas .
    Adorei sua cronica , um jeito gostoso de usar as palavras.Parabéns.
    boa semana , volto sempre.
    abraços

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  3. Do blogue do José passei para aqui.
    Esperava encontrar um e vieram logo três de uma assentada.
    Gosto muito de nêsperas, mas o que gostei muito foi da tua crónica. Dá gosto ler estes fios de pensamentos num português bonito e atraente.
    Não leves em conta a minha sinceridade limitada e demarcada pela simplicidade que me trouxe até aqui.
    Um abraço para ti e como gostei de tudo voltarei e vou seguir-te

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  4. Gostei do texto!
    Gostei do Blog!
    Gostei daqui!
    E algo que ressaltou por aqui foi: "...lidar com as pessoas não é fácil..." só isso já basta tudo!

    Voltarei mais vezes!
    Obrigada pela visita em meu Blog, sintaXe a vontade de voltar lá, quando sentir vontade! rs

    Beijos
    Kakau

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  5. Lindo!
    For you, my friend!

    "Conta a lenda árabe que dois amigos viajavam pelo deserto e,em um determinado ponto da viagem, discutiram e um deu uma bofetada no outro. O outro, ofendido, sem nada poder fazer, escreveu na areia:


    HOJE MEU MELHOR AMIGO ME DEU UMA BOFETADA NO ROSTO.


    Seguiram adiante e chegaram a um oásis onde resolveram banhar-se.O que havia sido esbofeteado e magoado começou a afogar-se, sendo salvo pelo amigo. Ao recuperar-se, pegou um canivete e escreveu em uma pedra:


    HOJE MEU MELHOR AMIGO SALVOU MINHA VIDA.


    Intrigado, o amigo perguntou:


    POR QUE, DEPOIS QUE TE MAGOEI, ESCREVESTE NA AREIA E AGORA,ESCREVES NA PEDRA?


    Sorrindo, o outro amigo respondeu:


    QUANDO UM GRANDE AMIGO NOS OFENDE, DEVEMOS ESCREVER ONDE O VENTO DO ESQUECIMENTO E O PERDÃO SE ENCARREGUEM DE BORRAR E APAGAR A LEMBRANÇA. JÁ QUANDO NOS ACONTECE ALGO DE GRANDIOSO, DEVEMOS GRAVAR ISSO NA PEDRA DA MEMÓRIA E DO CORAÇÃO ONDE VENTO NENHUM EM TODO O MUNDO PODERÁ SEQUER BORRÁ-LO."

    Kisses!

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  6. Oi Jordas, vim agradecer por sua visita e comentário em meu blog e aproveitar e conhecer o seu cantinho, adorei e virei sempre.
    Tb gostaria de te convidar pra conhecer meus outros blogs tá?
    http://deliriosdamiss.blogspot.com/
    http://cantinhodamissrj.blogspot.com/
    Beijos e bom fim de semana.

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  7. Sabes, fiz o percurso contigo e fui lendo os teus pensamentso, que lindas recordações! gostei muito.
    Bjs

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  8. Foi bem proveitosa as lembranças, Muitas vezes o avanço cultural e o modo de vida corrido, afastam as pessoas da sua essência, dos sentimentos reais e valorosos. E os substituem pela ingratidão e egoísmo. Dói.


    Obrigada pela visita.Bom fim de semana.

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  9. Lindo esse cantinho.

    Lembranças servem como retrovisor para sabermos que existe um caminho a trilhar,

    Beijo

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  10. Ui!!!!! Devo estar louca, não! Devo ter nascido louca!

    Choro e rio ao mesmo tempo, sabe por quê? Porque depois de amanhã eu completo 47 primaveras. Pergunte-me como? É o Amor que eu tenho e que me sustenta. E eu o dou desde pequena. Às vezes, recebo em troca, às vezes, não. Tudo bem, faz parte. Mas o Amor é sempre o Vencedor!
    Viva a Vida! A Guerreira vence mais 1!
    Beijos pra você, querido amigo***********************

    DE POEMAS

    Poemas são lágrimas ou risos
    me fazem viajar sem destino
    me fazem soltar a imaginação
    me fazem voltar a ser menina


    Inspiram-me facilmente
    eu sinto o encanto ou nostalgia
    de almas belas por dentro
    que traduzem palavras em alegrias


    Inspirar-se aqui é muito fácil
    com poetas e poetisas como vocês
    assim fica mais fácil de certeza
    vemos amor, vemos sensatez


    Fazer poesia é fácil demais
    difícil é usar o sentimento
    exprimindo coisas de dentro
    tendo a alma como instrumento.

    Suely Damn*

    Tenha um dia cheio de Paz e Amor*********
    Muitas flores, tais como amor-perfeito, selvagem, aquele que dá no Mar, onde nasceu a mãe do Amor. Só que é raríssimo*
    + Beijos, Jordas********************

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  11. Fiquei feliz pelos comentários.
    Um fim de semana feliz para todos os meus amigos blogueiros.

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  12. Obga ..pela visita...òtimo texto!!!!!!! bom fim de semana!

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  13. Olá amigo, Há muita coisa que dói na vida mas, a ingratidão dói muito. Adorei o texto. É lindo. Obrigado pela visita e comentário. Beijo meu

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  14. Boa Noite, Jordas!
    Lindo texto ... " estudando o mundo ..." profunda
    esta frase, fizeste-me pensar ..

    Obrigada pelos comentários no meu Blog!
    Um lindo amanhecer ... uma excelente semana!

    Meu Carinho!
    Constanze Gaúcha
    Rio Grande do Sul / Brasil

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  15. Oi Jordas, quanto detalhe na tua escrita, viajei pelas tuas lembranças de infância...
    É mesmo muito gostoso lembrar de situações que vivemos quando criança, ainda mais quando tivemos a oportunidade de uma infância onde não só brinquedos industrializados faziam a nossa alegria...também tive contato com a natureza nos meus primeiros anos, e é sem dúvida uma infância mais feliz!

    No meio da correria que vivemos, lembrar de coisas assim parecem nos tirar do chão!

    Gostei muito de te ler...

    Um abraço,
    Kenia.

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  16. Olá, vim retribuír-lhe a visita e encontro belos textos.

    Gostei muito.
    Te sigo para não perder de vista...rsrsrs

    Um abraço.

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  17. amei seu conto.. vc escreve muito bem.. prende a atenção..parabens.. beijão

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  18. Jordas,

    Lindo seu texto, gostei muito, as aliterações fizeram eu ouvir cara barulhinho das cenas!

    beijo

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  19. ...pude montar cada cena que descreves
    com tanta riqueza, e é claro emocionei-me
    porque adoro viajar no passado.

    tenha certeza de que não vou perdê-lo
    de vista.

    um beijo e obrigada pela
    gostosa visita lá em casa.

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  20. ...viajei nas imagens dessa cronica, voltei a infancia, tbm com copas em frutas, flores de primavera e brincadeiras num ribeirinho perto de casa, eram dias de magia. Hoje recordei-me ao ler-te. Divina sensação. Obrigada!

    Beijo!

    Paz e Luz!

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  21. fui tão longe...
    sinceramente
    ...deliciosamente longe!!!
    E QUE MARAVILHA!!!
    OBRIGADA POR ISSO, EXCELENTE FIM DE SEMANA!

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  22. Fui contigo Jortas ao tempo das nêsperas. Amei o caminho que as palavras me traçaram.

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