As nuvens cobriam as ameias da cidade, lá no alto, como se dum fumo pesado de destruição a noite renascesse, igual aos dias anteriores. Não chovia. Não fazia frio. Apenas um beijo zéfiro, atrevido, movia as folhas endurecidas das acácias e doa tis.
Alguns carros passavam, lentos e atordoados, como se algo os tivesse surpreendido, e a marcha lenta, por vezes abrandava mais, como que tomada por algo inexplicável.
Ao fundo da rua, junto a um tronco de acácia, brilhou vermelho. Um cigarro atiçava a noite de cor. Um corpo de homem engrossava a escuridão do tronco onde se encostara.
Desço a rua. Levo o cão, alheio ao tempo, à noite, à desgraça. Ele é feliz, e é sempre mais feliz, quando sai e saltita, rua abaixo, marcando território, farejando as esquinas, as ervas...
O cão é feliz porque se contenta em ser apenas cão.
O homem mantém-se no mesmo local, cigarro na mão, abaixo da cintura, ombro esquerdo apoiado à árvore, olhar cansado, semblante enrugado, barba por desfazer, camisola escura, calça de ganga, sapatilhas claras. Esboça um sorriso ao ver-me chegar. Atira um assobio ao cão, que logo corre e, abanando a cauda, cumprimenta, satisfeito, o soldado, como um amigo que encontra um amigo.
Ele baixou-se e passou a mão pelo pêlo do animal. Acaricia-o com meiguice.
- Boa noite. Então passeando?
- Sim, a voltinha higiénica de fim de dia.
- Também é preciso, faz muito bem este ar da noite!...
O cão continuava contente por aquele encontro. Mexia-se, trepava pela perna do velho soldado. Levantava a patinha e raspava nas calças, pedindo atenção.
- Este cão é muito meigo.
-Sim é muito sociável...
- Tem um pêlo muito fofo. Tem sorte. Ele deve gostar quito de si!...
- Sim, sobretudo quando saio com ele.
E continuou fazendo miminhos ao animal que os retribuía.
- O tempo está a melhorar? -Perguntei.
-Sim, já não era sem tempo... Depois de tanta desgraça... Penso que vamos ter uma semaninha de sol. Houve mudança de lua. Aproxima-se a primavera.
-Pois, acho que as terras estão muito fias e encharcadas. Ainda nem podei a vinha, nem fiz a caseira de aboboreiras...
- Já vai sendo hora, mas se preocupe, há tempo para tudo!
- Fiz tenção de avançar no meu passeio. Ele acompanhou-me até o outro lado da rua. Passos lentos e bem medidos, o tronco curvado, o rosto ligeiramente iluminado por um sorriso que se escapou da sua solidão.
- Vá continuar o seu passeio. Eu fico aqui. – Ordenou-me, sentando-se no murinho da RDP.
O seu olhar perdeu-se, para lá da rede verde escura da escola dos Ilhéus e pareceu-me pousar na planta, em forma de leque, do pequeno jardim. Quem sabe se aquela imagem lhe trazia recordações de África?
O seu olhar perdeu-se, para lá da rede verde escura da escola dos Ilhéus e pareceu-me pousar na planta, em forma de leque, do pequeno jardim. Quem sabe se aquela imagem lhe trazia recordações de África?
Eu avancei uns passos, mas o cão ficou para trás, junto do velho soldado, como se esperasse dele “um até amanhã”.
-Chame por ele!
Ouvi a sua voz cansada perder-se no silêncio da rua.
Apliquei o meu assobio, e logo o Mozart veio ter comigo, de cabeça baixa, reprovando o meu acto de deixar na solidão da rua o velho soldado.
O céu estava clareando, e farrapos azuis bordavam-se de estrelas.
O velho soldado ficou, ali, bordando a noite da solidão.
O velho soldado ficou, ali, bordando a noite da solidão.
Gosto sempre de ler as tuas crónicas do 'teu' soldado-leitor. Thanks!
ResponderEliminar(dia 20, levantou-se, foi à janela e diz que viu 'um rio' a correr, por isso não saiu de casa... Ainda bem!)
Gostei...obga pela mensagem...pelas palavras..obga Boa semana!
ResponderEliminarEis aqui uma obra de arte.
ResponderEliminarA melancolia da solidão é bela, eu digo que sim.
Adorei a "barba por desfazer"; é isso mesmo!
ResponderEliminarSempre deixamos alguma solidão ao passar por alguém, e carregamos tbm um pouco dela.
ResponderEliminarAdorei o texto
ResponderEliminarbeijos Xan
Jordas,
ResponderEliminarnem todas as noites são de solidão.
Beijo
Jardas,Esse velho soldado, que você fala aqui neste bonito conto, bem podia ser eu, por isso é que eu escrevo da maneira que você viu e parece que não concorda, e nem tem que concordar.
ResponderEliminarmesmo não concordando volte sempre, pois irei passando por aqui,
abraço
Jardas,peço desculpa, obrigado pelo seu esclarecimento,você até pode ser filho dum desses ex-combatentes, que tão mal tratados foram, e tão mal tratados continuam a ser,por ter lá ido comentar vou seguir o seu blog.
ResponderEliminarObrigado por escrever
sobre os ex-combatentes
bem haja também para si
Um abraço,
José.
achei a historia linda.. tem sua ponta de tristeza.. mas é de uma doçura que amei.. parabens..estarei te seguindo..beijão
ResponderEliminarEnquanto *o céu estava clareando e farrapos azuis bordavam-se de estrelas* uma menina-mulher guerreira já dava seus vôos*******************
ResponderEliminar****
Para você, meu lindo e querido Poeta/amigo Jordas*
*Lusco-fusco... cor quente que fascina
Meu coração humano a palpitar,
A pulsar, a vibrar, a incomodar,
Propagando-se em pura adrenalina...
Noturno... nas areias cristalinas
Explode o raio prata do luar,
As esperanças vão girando no ar,
Emitindo sons, notas sibilinas...
Muito invejoso, o céu tenta prendê-las
A todo custo, usando fio de ouro,
Mas as guardo sob meu cabelo louro.
E as esperanças, rútilas estrelas,
Do verde musical da água perdida
Transmutam-se na minha própria vida*
Soneto da Renata Cordeiro
Feito há uns 20 anos*****
Beijos e Felicidades!
Renata
Nos devaneios, tropeçamos com a solidão do outro e acordamos por crer que a nossa solidão nunca esteve sozinha, quando outra solidão abraça...
ResponderEliminarMuito linda tuas divagações...
bjs
Livinha
Obrigada por ter visitado meu blogue e deixado
ResponderEliminarcomentário. Gostei muito de vir aqui ao seu.
Para Abril vou dedicar o meu blogue ao homem,
permite que faça uma referência ao seu e
que extraí daqui algo para inserir no meu?
Se sim,deixe um comentário por favor.
Virei cá mais vezes. Registei-me como seguidor
do seu.A m/parte de seguidor está do lado direito
do blogue muito em baixo, tem que ir descendo,
não sei como se coloca ao centro, gostava de
passar para o centro mas não sei como se faz.
Um abraço
Esteja à vontade para citar.
ResponderEliminarOlá, querido*
ResponderEliminar*Se desistires do nosso amor por medo
Vou te julgar covarde e isso não combina contigo
Porque o meu homem é belo, másculo!
Se eu desistir de mim por ti
Vou te aprisionar pelo crime cometido
Pelo pesar sentido
Pelo corpo dolorido
Se desistires de mim
Abandonarás um pedaço de ti
Por não teres visto minhas lágrimas verdes*
Beijos, meu amigo Jordas*
Rê
Ah, é só um poema que fiz há tempos.
Sempre fui fã de crônicas. E poder ler mais um blog com crônicas tão maravilhosas me deixa muito satisfeita...
ResponderEliminarObrigada pela visita! Sinta-se a vontade para voltar sempre ao meu pequeno jardim. Eu esterei sempre a semear por aqui...
Abraços! ^^
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ResponderEliminarGostei do seu texto! Obrigada, pela gentil visita...
Beijos de luz e um bom domingo!
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Esta crónica é linda, triste mas com uma suave doçura.
ResponderEliminarBjs