07/02/2010

como se uma nau de recordações teimasse em não passar .

São dez da manhã.

O sol, subindo a nascente, vem dourando o ondulado mar e, espreguiçando-se, beija as plantas do jardim, orvalhadas ainda do abraço da noite.
Na promenade, idosos e adultos fazem a sua caminhada matinal.
O ar está ameno e o mar batendo nos calhaus, deixa que a brisa se salgue e aromatize de maresia.
Caminho também com o meu companheiro, o Mozart. O cão saltita de contentamento pela grama do relvado e aqui e ali deixa a sua marca ou fareja a de outro canídeo.
Ao fundo, junto ao antigo cais do carvão, as ondas elevam em espuma orações ao céu. O mar está picado. Bem mexido e barulhento este mar. A manhã assemelha-se a uma orquestra só de percussão.
Continuo a minha caminhada, apreciando as flores que aqui e ali, aparecem despreocupadas, na palete do jardim. As palmeiras têm as folhas ressequidas da maresia e do último temporal. As sebes de arbustivas estão esqueléticas. A figueira ergue-se branca e fria sobre as arribas. As buganvílias, apesar da água salgada, têm as suas flores, mas mudou-se-lhes a cor. O espaço apesar de tudo é agradável.
Ao fim da promenade tenho o encontro com os gatos. O Mozart quer cumprimentá-los, aproxima-se a medo e fica expectativo. Os bichanos olham, despreocupadamente, viram as costas e saltam para um banco. O cão late.
Os gatos ficam na deles, alheios ao bater das ondas e às preocupações de quem passa.
Aprecio o novo hotel da cadeia Pestana. Está lindo! Com os maçarocos a florirem timidamente de azul e lilás, altaneiros nos tufos arredondados das suas folhas, espreitando o horizonte distante, que agora, se torna escuro e ameaçador de chuva.
Apreço-me, estico o passo e encurto a trela do cão.
O mar continua batendo, agora com mais força. O vento sopra mais agressivo, e algumas nuvens correm pelo céu pesadas de chuva.
Estou chegando junto ao Lido. O café está aberto.
Entro e peço uma bica.
A um canto, lendo o jornal, está um velho. Cabelo curto, e bem penteado, barba desfeita, rosto alvo e ligeiramente satisfeito. Veste calça azul, camisa azul clara e um casaco de malha grossa azul-escuro. Na mesa tem um chá e uma sandes.
O aroma do café é excelente, forte e quente, quase mulato.
- Aqui está o seu café!
- Obrigado!
Peguei no conjunto e dirigi-me para uma mesa.
- Então como vai? - Perguntou-me o velho.
- Bom dia. - Respondi.
- Sente-se aqui. Faça-me companhia!
- Está bem.
Sentei-me e conversámos, longamente, apesar da ameaça de chuva.
Ouvia-se o bater da ondulação nos contrafortes da piscina, e de vez em quando uma onda mais atrevida espreitava pela vidraça da esplanada.
Falámos de África, da política local e nacional, da globalização, da Madeira antiga, de livros...
O homem lê muito. Muito mesmo.
Falávamos de África. Daquele enorme espaço de liberdade e descoberta e da guerra colonial.
- Da guerra...
A voz prendeu-se na garganta. Os olhos humideceram-se.
Houve um enorme silêncio. Pesado e negro como o céu.
Ficámos algum tempo em silêncio, como se uma nau de recordações teimasse em não passar, escondida atrás do ilhéu.
Eram agora doze e trinta.
Aproximava-se a hora de almoço e o telemóvel tocou.
Uma mensagem: o almoço está pronto.
- Tenho que ir. Até logo...
- Até logo. Não pense que me esqueci dos caderninhos que falámos, há já algum tempo... Disse-me estendendo a mão ossuda e experiente.
Levantei-me.
O seu rosto recuperara da noite africana. Estava mesmo jovial.
Ao virar do portão saudei-o com um levantar de braço e um sorriso.
Ele retribuiu.
Como estava mais fresco o velho soldado.
Fui para casa mais feliz.
Há manhãs em que o céu nos peroliza a alma de dádivas.
Esta foi uma dessas manhãs de pérolas.

9 comentários:

  1. Obrigada pela pérola que colocaste aqui para nós!

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  2. Fui lendo e seguindo os teus passos. Visualizei cada bocadinho do percurso. Quando lá passo, olho sempre para a figueira, na esperança de colher um dos seus frutos... ou verdes ou já colhidos.
    Linda descrição.

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  3. Uma pérola mesma, a tranquilidade, o sorriso, a palavra amiga na conversa...
    Gostei muito..
    Obrigada pela visita
    Beijos e abraços
    Marta

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  4. Que texto maravilhoso. Você escreve muito bem o e tornar-me sua seguidora esta valendo a pena. Busque sempre inspiração para nos presentear dessa forma.
    bjs.

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  5. Texto ótimo.Retribuindo a visita lá no meu "cantinho". Seja sempre bem vindo!!

    Um grande abraço!

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  6. Jordas, não sei este é o teu nome ou é pseudónimo, não interessa, interessa sim, que passaste pelo meu blog, deixaste um comentário e eu que, não te conheço, passei por este teu cantinho, para conhecer-te um pouco melhor através da tua escrita.
    Gostei! Gostei das tuas crónicas da vida, num retrato singelo e muito real, palavras sentidas de situações vividas...
    Nestas ultimas publicações, falas de soldados, da guerra colonial, também fui soldado há 40 anos, não passei situações traumáticas, mas estive 3 longos anos afastado da vida, prisioneiro, no dealbar dos sonhos.

    Um abraço, felicidades, e, porque estamos na época, bom Carnaval.

    Carlos

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  7. Olá, Jordas!

    Adoro as suas visitas*************

    *O DIA DE HOJE
    Ofereço aos amigos inesquecíveis, todos*******

    O dia de hoje é o mais importante na vida

    O dia de hoje deve merecer total prioridade.

    Só hoje se pode ser feliz

    O amanhã sabe-se lá se chegará,

    e o ontem já foi muito tarde para ter sido feliz.

    A maior parte das nossas dores é fruto

    dos restos do ontem

    ou dos medos do suposto amanhã.

    Viva o dia de hoje!

    Viva feliz!*

    Muito obrigada pelo carinho*******
    Abraços da Renata, na sobrevida, +++++ bem melhor de saúde.

    Depois me explica como vc muda de blogs a toda hora, ok?

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  8. Gostei imenso do teu texto. Obrigada pela passagem no meu "palco".

    Um beijo e bom fim de semana

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  9. Fui lendo e até me senti na vossa companhia, quase tomei um café também! muito lindo mesmo.
    Bjs

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