03/02/2010

A chuva batia forte.
A manhã era de bruma e cinzentamente o vento polvilhava as bátegas em esvoaçantes aguaceiros que se colavam à roupa e às superfícies mais incautas. O velho soldado, segurando um desengonçado chapéu tentava manter enxuta a cabeça, mas a ventania era bravia e nenhum dos dois resistiu.
O rosto inbarbeado, esquálido e magro, triste e desesperançado, estava gotejado de pérolas cristalinas que se penduravam nos pelos alvos da barba. Do nariz aquilino escorria uma enorme gota, e nos olhos perdidos do castanho das picadas, duas quentes lágrimas solidarizavam-se com as gotas vergastantes e grossas que agora, a prumo, feriam a rua.
A roupa colara-se ao corpo. Trôpego e cansado, mais arrastado pela nortada do que por vontade própria, acabou se recolhendo debaixo da sacada do prédio, ao fim da rua. Agora um ventinho frio canalizava-se da Avenida Luís de Camões, subindo a rampa em derrapagem de aceleramento e, espremido sob a coberta da rua e as paredes do prédio, parecia ter mais força.
- Esta boca de ar é forte e doentia. Disse escondendo-se na antepara de um pilar.
Realmente, ali o vento, mesmo em dia normais de brisa bonançosa, parece estar sempre de mau humor.
Pegou no guarda-chuva, ajeitou-o com cuidado e verificou que tinha duas ou três baleias (vergas) partidas. Depois olhou para a área abrigada onde me encontrava e exclamou:
- Estes materiais vindos da China, não valem nada. Antigamente havia uns tantos chapeleiros que os faziam, moldando à mão o suporte em fero e o cabo em madeira e depois aproveitavam as barbatanas dos cachalotes para fazerem as suspensões do tecido que era bem encerado. Hoje, são baratos, mas não servem para nada.
- Não me lembro de nenhum fabricante de chapéus do Funchal. Se calhar sou muito novo! - disse na esperança de manter acesa alguma distracção
- Sim havia vários, na zona do mercado e na rua da Alfandega. Até havia um amola tesouras que os consertava com arame fininho e uns alicates que o ferreiro da Carne Azeda fez de propósito para isso. Lembro que quando sentei praça, já lá vão uns quarenta anos, tinha uns vinte...
As palavras pareceram morrer-lhe nos lábios. Os olhos fecharam-se com força, como tentando recuperar o ecrã da memória.
- ...ainda se caçavam baleias na Madeira e faziam-se muitos objectos do dia a dia com os ossos e barbatanas que até eram usadas para a roupa interior de senhora.
- Sim lembro-me do meu avô Domingos, que era tanoeiro, ter entre as suas ferramentas, lá numa caixa, um objecto branco, meio curvo, que dizia ser um dente de baleia, com o qual pretendia fazer um copo para andar pendurado ao garrafão, servindo assim os homens quando fossem tratar da terra. Depois embarcou para o Brasil com a avó e os meus tios mais novos e nunca mais soube do dente!
- Sim fazia-se copos também dos chifres de novilhos e vacas, até de cabra. Antigamente aproveitava-se tudo. Vêm falar de ecologia e reciclagem. Estas gerações que nasceram no pós revolução, sabem lá o que é aproveitar e reciclar...
- Se não sabem a culpa é sua e minha que os educámos!
- Sim, mas parece que só aprenderam o que era marginal... já viu o que se passa no Parlamento, nas escolas, na rua, nos autocarros... Não se respeita ninguém. Nem velhos, nem senhoras nem crianças.
- Sim, mas o Parlamento é o centro do debate político.
-Qual debate político? Eles só debatem os seus interesses. Nem têm respeito. Como pode o povo tê-los como referência de conduta? Deixe-me mas é ir andando que estiou.
E pondo-se a caminho, olhou o céu e partiu para a farmácia que ficava no outro bloco com vista para a Avenida. A vida política não era assunto que lhe merecia pachorra.
Eu aproveitei e desci ao centro da cidade.
O dia prometia ser escuro e regado de tristeza.

8 comentários:

  1. Olá querido!

    Para outros que não tu e eu

    *Jurou-me eterno amor. A noite ia cahindo
    E, entre outras phantasias,

    Eu disse-lhe sorrindo:

    Se Deus surgisse agora, aqui, perante nós

    O que é que lhe dizias?

    - Que nos deixasse sós...

    AUGUSTO GIL*

    Beijos*
    Renata
    Problemas com 7 acabaram-se. Chegou outro que também se acabou. Porque eu decidi. Não gosto de atritos, nem tampouco de conflitos. Nenhuma guerra é justificável.

    ResponderEliminar
  2. Olá amigo Jordas!
    Grata por tua bela e sensivel poesia em teu comentário no meu blog.
    Seja bem vindo, te linkei no meu ok?
    Parabéns por mais esta bela postagem poética,
    Bem vindo mais um poeta, amei as tuas.
    Beijos e carinhos da jady

    ResponderEliminar
  3. "O dia prometia ser escuro e regado de tristeza". Que interessante o final do seu texto! Adorável! Abre para uma série de reflexões acerca de toda a história. Inclusive para essa mescla que você faz entre gerações (velho-novo, antigamente e agora...)
    Gostei muito da história. Prende a atenção e desperta em quem lê curiosidade para saber mais...


    Beijos!

    Luciana P.

    ResponderEliminar
  4. Obrigada pela visita.
    Adorei o texto.

    Bjsss

    ResponderEliminar
  5. Há dias que são realmente tristes...
    Belo texto...
    Obrigada pelo comentário que deixou no meu blog...
    Que haja sempre amor...
    Beijos e abraços
    Marta

    ResponderEliminar
  6. Despertei e vi que tinha comentário seu. Vim aqui pra deixar beijos, amore, eu te adoro!!

    ResponderEliminar
  7. cronicando lindamente, gostei imenso.
    linhas com tantas imagens e sentimentos alinhados e gostoso de ler.

    gostei e voltarei.

    beijos lilases.

    [no outro blog ha uma linda escrita sobre flores e poesias, nao dá pra comentar, mas está com aromas florais, belo!)

    ResponderEliminar