22/01/2010

Algum tempo depois

O homem estava no passeio da esquerda da rua, para quem desce da Coronel Sarmento para o Jasmineiro. Corpo curvado, casaco axadrezado, olhar distante, sapatos escuros, magro, como perscrutando a chegada de alguém.
A noite caíra havia uma hora. Ainda não eram vinte horas, daquele dia de Janeiro. As luzes da rua, acesas e baças, sombreavam-se nas acácias, verdes e arredondadas como guarda-sóis.
A passos lentos atravessava a rua. Parou a meio, olhou à esquerda e à direita, como se à memória lhe viessem lembranças da picada africana, e depois atravessou o restante caminho e foi apoiar-se ao tronco jovem dum til, plantado na berma do largo passeio cinzento e molhado. Ali ficou, curvado pelo peso da noite e esperando alguém.
Reparei numa mulher que vinha dos lados do Jasmineiro. Era relativamente jovem, andava de forma desenvolta e segura. Nunca julguei que fosse parar a uns vinte metros da caldeira do Til, onde o Mozart procurava marcar o território.
- Então, como te sentes?
Ele pareceu dizer alguma coisa, mas não ouvi.
- Vamos para casa que está frio. Ainda tenho o jantar para fazer...
Ele seguiu-a e entraram no Bêco dos Ilhéus. Beco com acento circunflexo. Ainda não chegou à toponímia o acordo ortográfico.
A sombra daquele espaço, apertado entre duas paredes de quintais, engoliu-os. Um cão ladrou à sua passagem. Uma ligeira brisa enrolou-se nas copas das acácias, no chão algumas folhas rolaram sobre si, pelas bermas do passeio e da rua.
O velho soldado regressava a casa.
Fiquei pensando, mais uma vez, naquele artigo, publicado num diário regional sobre a pobreza, esta semana. A foto era dele, reconheci-o pelas sapatilhas e pelo jeito de esconder o rosto entre as mãos. E pensei que a maior pobreza não é a de pão, mas a de não se ter a si.
A nossa sociedade está cada vez mais pobre de pessoas que não se têm a si.E entre a algazarra e sorrisos de actor, vivem na mais profunda solidão
A noite adentrou-se.
Eu regressei a casa.

5 comentários:

  1. A tua descrição está tão real! E ficamos sempre a pensar que devíamos, ou podíamos, fazer qualquer coisa... mas começar por onde? E agora que o caso está a ficar cada vez mais complicado...

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  2. OBS: O comentário abaixo é sobre a postagem Desejo do blog - páginas em branco para os nosso jogos florais.

    Desejos de ser quem realmente sou
    Sem máscaras a me esconder...
    Desejos de ser um sopro de mar,
    Para tocar com brisa suave o luar,
    E quem sabe com a gaivota voar,
    E plenamente a liberdade alcançar.
    Sendo assim... livre, serei mar.

    Obrigada pela visita. Voltare.

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  3. A maior pobreza não é a de pão, mas a de não se ter a si.
    As pessoas vivem apressadas, não têm tempo para os seus nem para si.
    Buscam as conquistas matérias e esquecem-se das conquistas que engrandecem o espírito a alma.
    Vivemos em uma sociedade que valemos pelo que temos e não pelo que somos. Os mascarados se perdem em meio à multidão solitária que já não sabe quem são e o que realmente buscam.

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  4. OláJordan

    Adorei sua visita e também seus blogues.Sua crônica esta magnífica, parabéns. Coincidentemente tenho um blogue que está oculto chamado Florálias . Sempre escrevi dentro desse tema e o jogo dos florais na poesia me encanta. Talvez eu reative o blogue , mas por enquanto só vou postar mesmo no Asas Róseas que você já conhece.
    bjs

    Rose

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  5. Obrigado pelas visitas.
    ando um pouco seco de inspiração para escrever.
    Prometo que ainda hoje deixarei aqui mais uma breve crónica.

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