14/12/2009

Um Reconto


UMA NOITE FOI NATAL

Num a terra, não muito distante da nossa, vivia com sua mãe, viúva, vestida sempre de preto, e gasta pelas penúrias duma vida de sofrimento, uma pobre criança. Habitavam num desprotegido casebre, entre fragas agrestes, fustigadas pelo vento no Inverno e pelo suão no Verão.
O Natal estava próximo. A lenha escasseava. Na caixa de madeira de castanho, há muito que se acabara o grão, restavam apenas algumas maquias de grosso rolão, um pouco de azeite e algumas moedas de menor valor, escondidas nos escaninhos. Desde muito tenra idade que aquela criança sofria na carne e na alma a infelicidade de nunca ter tido um único brinquedo, nem o pai, que falecera, quando ainda gatinhava, terá tido o prazer de construir o mais rudimentar objecto de lazer. A criança era agora um jovenzito de treze anos. Havia seis que uma doença misteriosa o lançara para a pobre enxerga de palha de milho, suspensa num catre de ferro, onde lençóis sempre frescos, mas já muito remendados davam àquele leito a honradez e asseio possíveis.
Nunca fora à escola. E nas raras vezes que crianças da sua idade por ali passavam, falavam dum lugar de encantamento, onde se aprendia a ler, escrever e desenhar. Contavam-se estórias, e todos os meninos brincavam, no largo espaço de jogos ou admiravam as plantas e as flores que aguarelavam o viçoso jardim. Ele ficava de olhos brilhantes e a sua cara ganhava a luz dum sorriso, que logo se desvanecia. Ele estava condenado a não ir àquele espaço de encantamento.
A mãe lamentava a sua triste sorte e a daquele único filho: – Que será dele quando eu morrer?!!!
A criança sempre olhava pela fresta do pobre quarto e via ao longe a cidade. Nos seus arredores cresciam ricas moradias com piscinas. Nas tardes de Verão ouviam-se as crianças chilrearem ao sol de Estio. No Inverno, agasalhadas nos seus kispos, subiam a montanha e esquiavam mesmo ao lado do casebre. Ele, porém,  tiritava de frio. Na lareira o lume mal se aquecia a si, quanto mais a casa...
Era noite de Natal, ao longe ouviam-se as músicas. Via-se os quintais e enormes árvores iluminadas. Naquela noite, igual a todas as noites,  entre as fragas agrestes, uma mãe viúva chorava a pouca sorte e o único desejo inconcretizável do filho: poder ir à escola. Parecia injustiça divina: -  Meu Deus, o menino apenas tem um desejo...- reclamava na sua angústia.
A criança sempre sonhava.
– Mãe, hoje é noite de Natal, porque não representamos o presépio?
– Ó filho, isso é impossível! Eu estou tão cansada e faminta, tu está assim, entrevado... e falta-nos um homem para fazer de S. José!
– Não! Aqui estou...
Aquela prontidão surpreendeu-os. Era uma figura enorme de homem. Da sua voz emanava uma paz e segurança indiscritíveis, o seu olhar era penetrante e meigo. Entrou, pegou na criança e disse:
– Sou um pobre peregrino que passo todos os natais levando presentes às crianças, mas nunca passei por aqui, porque esta casa não tem chaminé e confunde-se com o negro das rochas. Na cidade as casas têm as chaminés fechadas ou atulhadas de presentes. Estava de regresso ao Norte e vi um fumo saindo por entre as fragas e resolvi aquecer as mãos. Vi então este casebre e ouvi o teu lamento de menino. Aqui estou . Façamos o presépio.
E assim foi. Depois de representarem o nascimento, a homem mandou que se pusesse a mesa.
– Mas, Senhor, nada tenho para vos dar!... – Disse atrapalhada a viúva.
– Ide à caixa e encontrareis !... - Ordenou, enquanto conversava com a criança.
Na caixa, agora cheia, estava boa comida, fruta e bebida.
Posta a mesa e jantado, saíram e olharam o céu azul, salpicado de estrelas, a cidade em silêncio, prenhe de luzes saltitantes de muitas cores... A lua subia cheia, lá longe.
O homem olhou o jovenzito, que se arrastara até ao curto logradouro, e disse-lhe:
– Vai para dentro, quero falar com a tua mãe!
A criança obedeceu. Arrastou-se pelo casebre de chão de terra negra e fria. Junto à lareira estava um volume. Abriu-o. Eram livros, cadernos e lápis. O seu coração pulou de prazer. Tinha pela primeira vez um presente no Natal, e logo o que sempre desejara: livros para ler e material para aprender e ir à escola. Gritou de alegria:
- Mãe! Mãe, nem vai acreditar!
Ela correu, trôpega, enrolada no negro do vestido velho, pensando que o filho se encontrava em alguma aflição, mas, quando se aproximou, ele estava erguido nas pernas, o rosto, outrora macilento, iluminara-se  e nos seus olhitos brilhavam duas estrelas.
– Mãe, estou curado!.. Posso ir à escola e brincar...
Correram à porta, mas o homem já se havia posto a caminho.


Este é um conto adaptado, com alguma liberdade, do Suave Milagre de Eça

2 comentários: