14/08/2009

Monte de saudades

Manhã cedo. Nuvens douradas a nascente. Brisa fresca descendo das montanhas, breve e aromática, entendendo-se pela cidade, como gaivotas brancas zizaguando em acrobáticas manobras de tudo mover e renovar. A maré está baixa, e as ondas espreguiçam-se na praia, sem pressa, sem stress de regressar ao mar, desenham saudades e paisagens na negritude da areia, deixando pequenos relevos claros e traços de montanhas arredondadas de um país distante, onde a baía era enorme e ornada de coqueiros e lindas jovens mulatas, pela tarde, enchiam os cafés da marginal de Luanda, de promessas e risos.
Sentado num banco do cais da cidade está um homem. Olha o passado com a distância do presente, como querendo rasgar as grades de água que o separam dessa paisagem desenhada na memória arenosa da praia.
Hoje há outro movimento na cidade. Há mais carros, mais pessoas, mais frenesim. Turistas que se deslocam para o extremo leste, onde vão apreciar a cidade das cabines do teleférico que os levará ao Monte, numa subida suave e arrebatadora duma tela pintada em tons de azul, verde e branco, onde outras cores surgem, pontualmente, dando colorido à baía vista de cima.
- É véspera do Monte. A cidade corre para o fresco do Largo da Fonte...
Disse o homem com uma nostalgia revisitada de meninice!
- Recordo a primeira vez que fui ao arraial do Monte. A minha tia levou-me com uma irmã mais velha. Apanhámos um autocarro com um enorme nariz. Era vermelho! Para os lados do Poularinho. Aquela máquina era forte, mas o rumrum da subida foi cansativo. Quase uma hora! Deveriam ser umas sete ou oito da tarde. Eu vestia uma camisa branca, e uns calções, uns sapatinhos pretos, daqueles de verniz? Talvez! Lembro que regressaram muito arranhados e pouco luzidios. Chegados ao Monte, recebi um bordão, a que logo descasquei o papel e logo chupei com a gulodice de criança. Fomos à igreja, à capela das Babosas. O cheiro de carne assada, impregnava o ar de fome e apetite. Os romeiros chegavam de todos os lados, cantando e tocando viola, rajão, braguinha, pandeiretas, castanholas, gaitas, raspando pinhas umas nas outras, requereques, violinos, alguns faziam subir e descer o brinquinho e logo os "vilhões" arqueavam os corpos e dançavam suspensos dos arames. Grupos dançavam e cantavam ao despique. Sei lá! aquilo era uma festa de arromba! Mais tarde as velas saiam em procissão e as árvores iluminavam-se de cor. Mas o que mais me atraia eram os patos no lago. Aqueles patos brancos, que nadavam despreocupados. Havia ali várias vendedeiras de doces. Aquele era o melhor lugar para se ouvir as bandas tocarem as suas marchas.
Quando o sono chegou, fui levado para a Igreja e, a um canto, aninhei-me, no chão, e dormi até de manhã!
A manhã estava fria, e de pernitas descobertas cramei à minha tia do frio. Ele disse:
- Isso já passa! Vamos tomar café.
Fomos a uma mercearia que existia à entrada do Largo da Fonte! A minha tia conhecia o senhor. Pediu café com leite para ela e cacau para mim e a minha irmã. Bebemos. Como era bom aquele cacau!
Os grandes plátanos inundavam de sombra o Largo raso de pessoas, mas outras continuavam chegando.
Eram nove horas. Assistimos à missa. Logo depois, da varanda do adro, reparei nuns homens, vestidos de branco e com chapéu, que empurravam umas corças com pessoas. Eram os carreiros do Monte.
Muitos dos romeiros já haviam cumprido as promessas, e os horários enchiam e rumavam ao Pico do Arieiro, ao Ribeiro Frio, ou a outros destinos.
Descemos pelos jardins. A festa estava a chegar ao seu ponto alto. Ao meio dia era celebrada a festa, com pompa e circunstância. Chegados à ponte do caminho do monte, por onde subia o comboio, num bazar, peguei num palhinhas e coloquei na cabeça, encantado com o adorno. Descemos o caminho calcetado, inclinado para o mar. As corças deslizavam, cheias de turistas, que reprimiam calafrios e medos presos nas bordas dos cestos, ou em arrepios sonoros que escapavam das gargantas aflitas.
Agora o sol estava alto e os foguetes estouravam sonoros e festivos no céu azul. A cidade estava lá em baixo. Longe.
A cidade continua longe!...
O sol espraiava-se no azul do mar e o Lobo Marinho deslizava, branco e monótono, rumo ao Porto Santo. O homem levantou os olhos e estendeu-os pelo azul imenso da distância. Depois, com ar de enfado, ergue-se e caminhou, arqueado, para as escadas, outrora frias de água salgada, agora secas de indiferença, e deambulou pela areia em busca das festas do Monte.

1 comentário:

  1. Gostei da associação 'Monte' e 'saudades' ! Bem conseguido! Também me lembro cheia de saudade das idas à Festa do Monte! E gostei muito da maneira como 'entrançaste' as duas histórias :)
    Thanks ;)

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