15/05/2009

A professora analfabeta


A avó Virginia, era uma mulher de tez morena, cortada pelos sulcos da idade, mas em cujo rosto trigueiro, de olhos vivos e castanhos, sempre trazia um sorriso de ternura e compreensão.
Recordo as tardes de Agosto, depois da debulha do trigo, lá para os lados do Lombo, local onde estava o palheiro com as vacas e os currais com cabras, ao fim do dia, quando o ar era mais macio, e soprava uma brisa fresca, depois da canícula das quatro, ela incentivava-me a mondar os restos de trigo e balanco que aloirava os poios:
- É preciso tirar esse mato, para se tirar regatos e depois plantar milho e a rama, que a água é já amanhã e depois o giro é mais longo. Se não o fizermos neste giro atrasa a colheita! - Era assim que ela falava, colocando em tudo o que dizia um acento prático e visível.
A minha avó tinha uma personalidade meiga e uma paciência de Job, sempre nos tratou muito bem, embora não deixasse de nos castigar, quando não éramos cumpridores. Tinha uma acentuada preocupação com os nossos trabalhos de casa. Dizia que a Maria Pires era uma professora muito exigente e que era necessário ter as coisas sempre bem feitas. E fazia-nos sentar debaixo da latada de vinha, onde a luz coada da tarde enchia de fantasias o terreiro da casa, e aí, qual perceptora, supervisionava o nossos desempenho.
Enquanto escrevíamos as cópias, ou resolvíamos os problemas ela deitava sentido à panela, onde ferviam as couves, o feijão maduro, a carne de porco salgada, a abóbora amarela, as semilhas e mais alguns legumes. Depois vinha ver se a letra era redondinha, se os problemas estavam resolvidos, e se sabíamos as tabuadas e os verbos. Se a s folhas estivessem borradas, pois as canetas verdes da Pelikan, muitas vezes deixavam correr mais tintas que deviam, logo ela nos obrigava a passar tudo a limpo, sim que um trabalho só se entrega bem limpo.
Ela não tinha ido à escola, não sabia escrever. Mas tinha uma vontade de aprender enorme. Sabia ler, "juntava as letras" - como dizia- e lia qualquer texto. Sabia resolver os problemas, desde que os lessemos, e ajudava-nos duma forma sempre muito prática.
Mas do que eu mais gostava naquela mulher eram as histórias que contava dos seus avós, do pai que construira a casa, depois do senhorio lhe ter dado autorização, com 5 tostões, das idas à missa, descalças, só usando os sapatos no Natal... Sei lá as histórias que contava!
Hoje a saudade é grande. Lembro o domingo em que estive com ela, antes de nos deixar, o seu cabelo branquinho e lavado, cuidado que sempre teve, estava apanhado em cócó, preso por agulhetas, formando um carrapito redondo, no alto da cabeça. Os seus olhos sempre meigos, fixaram-me e ela disse: - Que sejas feliz com a tua mulher e os teus filhos, mas, se não tiveres essa sorte, não deixes de ser feliz!

Três dias depois, serenamente, partiu nos braços do meu pai.

9 comentários:

  1. Bem, Jordão, no meio dos meus trabalhos infinitos, a tua prosa volta a prender-me! Interrompi tudo, parei e li com calma e com tanto prazer... Não sei se para ti é um elogio ou não, mas prefiro a tua prosa à tua poesia. É como com o Torga: versos riquíssimos, mas uma prosa fabulosa, que depois de lida anda connosco para sempre. Parabéns ;) (agora volto ao meu trabalho cheia da calma que a tua Avó Virgínia me inspirou ;)

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  2. Oh, como nós agradecíamos outras avós Virgínias que nos ajudassem no trabalho de educar...

    Dá este texto a ler à tua filha (agora ou mais tarde). A avó Virgìnia merece ser recordada.

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  3. Como eu gostei destta avó Virgínia. como eu gostei do teu texto. Uma homenagem.
    A quem terá saido este neto da avó Virgínia?

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  4. Que forma fabulosa de recordar alguém...alguém que nos foi (e ainda é) tão querido!

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  5. É memorável a forma como retratas os nossos antepassados.Tenho saudades dos nossos professores "analfabetos".

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  6. Olá! Gostei imenso de ler este texto!!
    Fez-me também recordar com muitas saudades e carinho a minha avó...
    Parabéns pelo blogue! Está fabuloso!

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  7. Gostei muito de conhecer esta avó maravilhosa! A comida, as histórias, a serenidade do seu rosto...Parabéns!

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  8. As reminiscências do passado trarão sempre saudades daqueles que partiram e que tanto contribuiram para a formação da nossa personalidade... este maravilhosos texto surge, obviamente como homenagem às nossas avós... tão doces... tão amáveis...

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