24/05/2009

Avó Maria




Comecei a minha crónica falando dos meus avós paternos, agora passo, caro leitor, à saudade da minha avó materna. Maria Rodrigues era o seu nome, nome curto, filha de Eduardo, mais conhecido pelo avô Lancha e de Francisca Vieira. Era baixa, tinha o cabelo frizado, mas tinha uma genica de mulher do povo. Recordo os sábados à tarde, quando ela amassava no grande alguidar, feito de um só tronco de carvalho, pelo meu avô, encaixado no cesto de vindima,daqueles de aba larga e de vime negro, e ela, desfazendo com água morna o fermento crescido, feito na véspera, com um naco de massa azeda da amassadura de oito dias atrás, e acrescentando mais farinha branca e farinha de trigo branco produzido nas costeiras da fazenda dela. Passado um bocado, a massa já estava unida, mas faltava a batata doce, que ela esmagava e fazia desaparecer, entre os socos fechados das suas mãos. Depois de um bom tempo, ela ajeitava a massa no alguidar, traçava uma cruz, colocava em cada quarto um furo com o dedo, simbolizando uma chaga de Cristo? Não sei!
De seguida polvilhava de branco aquele corpo informe de massa , colocava uma toalha de linho branca, um cobertor e deixava levedar. Agora, lavava as mãos em água morna, buscava uma pinha com lume do lar e acendia com alguns chamalhos a lenha grossa dentro do forno. Passado uma hora, hora e meia, vinha ela espreitar a amassadura a ver se estava em condições de tender. Aí começava a fazer pequenos pães, que colocava num tabuleiro, separados por pregas da toalha, e ia-os abafando com cuidado. Entrementes, espreitava o forno, olhava as pedras, que branqueavam com o fogo, e que estavam a chegar ao ponto. Ela pegava na pá, colocando o pão tendido há pouco, dava-lhe uma palmada lateral, como se fosse um bebé recem nascido e fazia-os entrar no calor com uma precisão de artista. Arrumava-os com muito cuidado, preenchendo toda a área do forno, que ficara muito branco, até ao último pão levar a respectiva palmada e fechar a formação de soldadinhos. Por fim colocava a porta na boca do forno e ia raspar a massa que ficara nas paredes do alguidar. Pegava numas batatas, docinhas como mel, cozidas e amassava-as com mais um pouco de farinha e fazia as rosquilhas.
É sobretudo delas que me recordo. Ela pegava na massa, fazendo-a rebolar sobre a tendeira, depois cortava-a em pedaços, dava uma volta e prendia-a no ponto de encontro com a pressão do dedo indicador. Depois dela retirar o pão do forno, colocava-as lá dentro e passado algum tempo, ela tinha uma para cada neto. Comê-las ainda quentes, barradas com manteiga caseira, era um supremo manjar! Em datas mais importantes, como no Natal, ou pelos anos de algum dos netos, ela fazia um brindeiro.
Mas certo dia ouvi dizer que ela ía para o Brasil. Vi o meu avô encher uma caixa com muitas coisas, e, numa manhã de Maio, lembro de os ver partir.
Eu estava de pé, dentro duns calções de ganga ou sarja azul de arrigeiras, no assento que percorria o longo terreiro, quando ela me beijou e disse que um dia voltaria, mas não voltou. Depois de terem ido apanhar a fraguenete no Janeiro, que os trouxe com o caixote de madeira para o vapor que os levaria ao destino, fui chorar para dentro da coelheira que havia debaixo do corredor. Era lá que estavam os coelhos branquinhos que me deixou.Durante algum tempo eles foram a presença ausente dela.
Eram tempos felizes, apesar de tudo...
Ainda hoje sinto aquele cheiro a pão fresco, quando vou à casa da minha mãe, sim que ela também amassa, mas as rosquilhas é que tinham um sabor único, um sabor doce e aromático, quase divino, de guloseima.

3 comentários:

  1. Não me lembrava, mas uma tia minha fazia exactamente os mesmos gestos; por lá, as batatas eram cozidas juntamente com o pão e era delas que nós ficávamos à espera.
    Afinal o ritual não estava esquecido ...

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  2. O Brasil era a terra dos esquecidos. Quem ia, raramente voltava. Quem ia, guardava a vida em caixas de muitas coisas, perdia-se da terra, mas, tal como a Avó Maria, deixava a saudade escondida na coelheira, no cheiro do pão, no sabor das rosquilhas, nos brindeiros da festa.

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  3. Lembranças de infância que nunca esquecemos! Estas é que são das boas e que ainda nos embalam a alma quando estamos mais tristes. Apesar de Maria Rodrigues não ter voltado, continua no teu coração. Afinal nunca partiu!

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