29/03/2011

A ESPERANÇA DO TEMPO

A Via-Sacra acontecia todas as sextas-feiras depois das Cinzas.
A minha tia Lurdes, catequista e solteirona, da magreza da sua sabedoria pois servira em casa de Cónegos e padres, arrebanhava-nos e leva-nos ás cerimónias.
Eram umas tardes bem passadas. Descíamos o caminho empedrado do Janeiro, depois de ter passado pela vereda das Eiras, ter apanhados as gaitinhas na tapagem de senhora Virgínia, em magote e algazarra chegávamos ao adro da igreja. O relógio da torre andava sempre entre as quatro e meia da tarde e as cinco. O Ornelas tratava-lhe da saúde e mantinha-o sempre bem afinado pela emissora.
Sob a sombra do alto Carvalho, que ficava em frente da Câmara Municipal, que nesse tempo estava a ser reabilitada, esperávamos a catequista e as mulheres que a acompanhavam. Logo depois entrávamos em silêncio no templo, despido de flores, e onde abundavam as cores da privação e da purificação pascal, o roxo.
Às cinco , o Padre Gabriel, do alto do seu vozeirão de tenor, começava a cerimónia com invocações em latim. Três homens com opas roxas, bem vincadas, seguravam duas lanternas no cimo de varões de prata e, no meio, o Parrucas elevava um madeiro negro, donde tombava em arco uma roxa faixa de sofrimento. O padre acompanhava em demorada pregaçã, seguida de um Padre-nosso a agonia de Cristo pelos quadros da paixão, numerados ao longo das naves laterais da Igreja.
As cerimónias da via-sacra eram muito concorridas. Depois havia um pregador que dissertava do púlpito sobre uma das estações.
Acabada a missa, já a tarde ia adentrada , mas a tia Lurdes sempre arranjava uns trocados para comprar na mercearia do Sr. Daniel, hoje o espaço é um Banco, na Praça João Abel de Freitas, umas amêndoas pequeninas que o homem baixo e muito simpático, já velho, com o cabelo branco e raleado retirava de diferentes lugares do enorme mostruário em vidro que tinha sobre o balcão de fórmica verde. Era a alegria da pequenada que carburava energia para subir o caminho de novo, irregular ou em degraus de basalto lascado que facilitava a descida das corças dos boieiros.
Era já alpardinha quando se chegava a casa, mas havia que ir apanhar erva para as cabras, os coelhos, limpar o palheiro da vaca lateira, ou mesmo ir até a Levadinha do Moreno e trazer um molho de charuga para a cama da vaca.
Havia sempre tarefas a serem feitas antes da ceia. Depois, à luz dum candeeiro a petróleo, enquanto a mãe dava mais uns pontos na tela ou na toalha de linho, acabávamos os trabalhos de casa que a Maria Pires não era para brincadeiras. Raramente aceitava a desculpa dum trabalho de casa não realizado. Era uma professora exigente.
Mas a Primavera era uma época de muita alegria. Os pólenes não me davam alergia, e as sementeiras de Fevereiro e Março cresciam rodeadas de couves floridas, cujos espigos adornavam os pratos de milho cozido ou se deitavam luzidios de azeite como conduto das batatas-doces que por esta altura cresciam para o soalho de madeira na loja.
Recordo dumas flores que antes de desabrocharem em estrela de cores lilases e níveas se pareciam com estas. Eram os nossos ovos de Páscoa.
Era outro tempo!... Os tostões nem davam para o açúcar, quanto mais para amêndoas!
Naqueles dias as rodas de parede e os barrancos enchiam-se de flores. As encostam pareciam altares, e pelos buracos das paredes, as violetas espreitavam em minúsculas e curiosas flores da cor dos Passos.
A Páscoa vinha depois com as aleluias a florirem nos barrancos do Piorno e a mostarda a baloiçar à brisa da tarde as suas amarelas flores de abundância.
Era um tempo de esperança e de flores apesar do violeta cerimonial.

Era um tempo de esperança. Era a esperança do tempo!

______
A tia Lurdes, no casamento da minha irmã, é a primeira da esquerda ao lado da minha avó.

11 comentários:

  1. (antes de comentar, só dizer que todas as professoras de apelido Pires têm fama de exigentes ;)

    O texto é mais uma das pérolas que nos ofereces... A história levando-nos a outros tempos, de esperança como dizes, faz-nos bem neste tempo de 'desesperança'. A linguagem a dar o sabor do tempo! A fotografia a ganhar vida com as tuas palavras! E, acima de tudo, a tia Lurdes: é como se eu tivesse ido com ela até à igreja! Obrigada!

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  2. Que falta que nos faz neste momento um tempo de
    esperança, não é amigo?
    E não é que as sondagens ainda lhe dão acima
    dos 30%? E às tantas ainda ganha as eleições...
    já não sei nada...
    Bj.
    Irene

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  3. A crónica é belissima e retrata bem a actividade campestre, de sobrevivência, de outros tempo, que parecem distantes, mas ao mesmo temo de ontem.
    Um abraço

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  4. Oiii..tudo bem?
    É tão bom quando venho aqui, sempre encontro textos que me fazem refletir, pensar e até suspirar..rs
    excelente post...amei!

    tenha um bom fim de semana, abraços carinhos.
    Bjos no coração.

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  5. Retribuindo o seu carinho e visita.


    Curiosa esta em festa. Comemorando 568 Seguidores e 162.850 mil visitas.
    Esta conquista só foi possivel, porque vc fez a diferença no blog. Muito obrigada pelo carinho, pela amizade e seu afeto.
    Só tenho agradecer pela confiança que sempre depositou no blog. Sei que ando mesmo sem tempo trabalhando muito.Mas tenha a Certeza que a nossa amizade fez com que nos tornassemos grandes amigos. Obrigada pelo seu carinho. Grandes Amigos moram no Coração da Gente. Mesmo sendo pequenos. Portanto venha buscar seu presente. CURIOSA TE ESPERA. FAZES PARTE DESTA CONQUISTA.
    Muito obrigada..
    Um forte abraço
    Sandra

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  6. O tempo passa mas as recordaçoes sao sempre bem lembradas...obrigada mano por tuas palavras que me fazem regressar ao passado e muito bom...beijo mano adorote

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  7. como foi tudo tão perfeito, crescer numa familia numerosa tem sempre por onde pegar;as saudades que sentimos desses tempos onde tudo era conseguido com muito sacrificios. amo-vos familia agora vem mais um ,para a familia ficar mais completa (14 neto)

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  8. Era bom que as pessoas se identificassem para eu poder agradecer!

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  9. Sempre perfeito a sua forma de escrever nao é mesmo? Obrigada pela visita, não tenho nem argumentos sobre o seu comentário. É sempre uma satisfação te-lo por lá para aperfeiçoar os meus humildes posts.

    =)
    beijo, querido.

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  10. E é tão bom recordar de tantos detalhes cheios de nostalgia, não? :)

    Um beijo, e obrigada pela visita!

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  11. O teu texto foi uma viagem encantadora ao meu passado. Bebi as tuas palavras arrebatadoras e fiquei, deliberadamente, embriagada! Revivi, com uma mistura de nostalgia e magia, o meu tempo de menina. Belos tempos! Os perfumes naturais do “meu” campo, os terrenos transformados em esplêndidos jardins, a minha família, os meus amigos, … e, sobretudo, a alegria de viver! Obrigada, Jordas!

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