02/04/2010

LENDO OS JORNAIS

A hora tinha mudado.

O sol caia em bagos dourados nas copas floridas dos jacarandás.
Ao longe uma sirene cortava o lilás quaresmal das flores, enquanto um velho folheava um jornal, impaciente com o vento que corria manso a rua quase deserta, quase luz.
Eram dezanove horas.
Sentado onde costuma desfolhar as memórias, o velho soldado lia as páginas do desporto do jornal do dia. O Benfica estava mais perto do título depois de vencer ao Braga. Lia com a folha afastada, sem precisar de dedo orientador. O seu rosto iluminava-se de contentamento, como o duma criança quando se lhe mostra um bombom. As rugas perdiam o sulco da desilusão, e os malares preenchiam de cor.
- Por aqui!...
- Este é um bom lugar, ninguém me maltrata...
- Não! Eu sei que tem amigos por estas bandas. Da rádio?...
-Sim da rádio e uma rapaz que esteve comigo no Ultramar. O Coelho.
- Não me diga que é de Santa Cruz? - Perguntei meio incrédulo.
- Não! Este amigo é da Calheta. Quando acabou o serviço militar embarcou para a África do Sul. Dizem que fez fortuna por lá...
- Houve muitos madeirenses que tiveram sorte... O Pestana, o Berardo...
-Sim, mas só Deus sabe como.
- Isso? Nunca vamos saber. O certo é que chegaram cá ricos e compraram muita coisa.
Uma moça passou vaporosa e produzida. O soldado seguiu-a durante algum tempo. Depois voltou a folhear o jornal, e com ar pensativo, fixou-me e disse:
- Li aqui que um professor pôs fim à vida depois de ser achincalhado pelos alunos. Já viu que país este que não respeita aqueles que formam as gerações do futuro? Sim - disse alteando a voz - sim que se não fossem o professores muitos destes políticos nem dizer duas vezes batatas seriam capazes. E alguns não são - disse como se fosse um aparte teatral.
Eu estava sem pressas. O dia tinha sido longo. Estivera a avaliar o pessoal e a negociar objectivos. Avaliar é uma tarefa árdua. Estava ali interessado no monte de jornais e revistas que o homem arrumara.
- Já leu esses jornais todos? - Questionei curiosos.
- Não, nadinha disso. Li os títulos de alguns e achei interessante para dar à minha irmã. Ela gosta muito de ler.
-E o senhor?
- Eu também, mas ... tenho perdido o gosto. Li A Fúria Divina . É interessante, mas é demasiado comercial. Sabe agora tudo o que tenha a ver com terrorismo vende.
- Mas é um tema actual.
- Ainda estou esperando por um escritor que dedique o seu tempo a escrever sobre a guerra do Ultramar.
Ali se viveram muitos dramas, angústias e muitos actos de amor.
- Penso que sim...
-Lembra-se da escola, onde eu ia ver as crianças brincarem debaixo da mangueira. A professorinha era uma mocita, deveria ter uns vinte anitos. Coçou a cabeça a tentar recordar a idade certa. Sim, tinha vinte anos, e uns olhos enormes castanhos. O sorriso era uma janela de felicidade. Essa moça acabou casando com um tenente miliciano. Tiveram filhos e construíram uma vida lá. Depois vieram os bandidos.
Numas das saídas para o mato, o tenente caiu com a coluna numa emboscada e ficou ferido. Uma granada arrancou-lhe um braço e desfigurou-lhe o rosto. A intervenção atempada no hospital salvou-lhe a vida, mas o homem, galante, magro e alto ficou dobrado pela escuridão dos dias.
A professorinha estava grávida, mas não o abandonou. Cuidou dele, e mesmo depois do acidente ainda teve mais um filho dele. Como vê haveria muito pra ensinar às novas gerações ... Vejo todos os dias a degradação de princípios.
- É a sociedade que construímos...
- Não, é a sociedade que nos querem impor!
O sol desaparecera, e um frio miudinho descia sobre as flores. Começava a sentir a pele crespada. O homem vestiu o casaco e disse:
- Está ficando fresco, daqui a pouco vou para casa. Só estou esperando a minha irmã.
- Podia contar-me mais histórias de África?
- Sim, mas hoje não. Vá para casa que ainda fica doente.
- Até amanhã!
-Íté. Vou arrumar os jornais!Já ando meio trompicado das canelas. preciso mexer-me...
Subi a rua. As sombras começavam a tornar parda a visão e o horizonte.
O velho soldado falava de princípios e valores... - entrei no prédio a matutar.

7 comentários:

  1. Fiquei na expectativa de ler novamente algo aqui neste teu espaço, pois da última viajei longe, e agora ah que delicia ler isso... sinceramente voçê escreve como o Erick Nepomuceno é encantador, forte e calmo, e as entrelinhas recheadas...
    Adoro, teu blog Jordas.
    Se tiver curioso, ou se não tiver visto nada ainda sobre o meu querido autor Erick Nepomuceno procure que tenho certeza que irá gostar, "A palavra nunca" é um bom livro dele pra começar, coletânea de contos - fantástico!!!
    Abraços querido Feliz Páscoa!!!

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  2. Amigo gostei da conversa e se não fosse cá por coisas metia conversa também.
    Voltarão certamente a debater este tema interessante do nosso tempo e da passagem por África. Dramas e vidas destruídas para nada.
    Fomos carne para canhão e hoje somos tratados como criminosos.
    Hoje quem passa seis meses no Afeganistão ou em Timor é um Herói. Tem regalias, bons salários e outras promoções de carreira.
    De nós falou o Paulo Portas mas nada mais.
    Há soldados do Ultramar muito maltratados.

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  3. estou na espectativa de ler novos, gostei de vc cronicando!
    com carinho
    Hana

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  4. O seu Cronicando é excelente, Jordas. Muito bom mesmo. Os textos são ótimos. Bom estar aqui.

    Ótimo domingo pra você.

    Beijos

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  5. Gosto da maneira como escreves, sem esforço vou indo com calma até bem á ultima letrinha.
    Bjs

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  6. É um texto para meditar...
    O "Com Amor" convida-o a enviar um poema seu e/ou do poeta favorito, sobre a PAIXÃO para eu colocar no blog juntamente com o meu comentário.
    Gostaria imenso que participasse; o mail é martavinhais@gmail.com.
    Beijos e abraços
    Marta

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