06/12/2009

A Pior das Guerras



Ele estava lá.

A mata vestia-se de clarins, boinas pretas, castanhas, vermelhas, verdes, empunhava as armas de infantaria, cavalaria, artilharia e as outras todas. Era o dia de homenagem aos soldados mortos no Ultramar.
Passaram tinta anos. Quem lembra deles?
O que é isso de Ultramar?
A geração que está a mandar neste país não sabe o que foi a guerra em África. A geração da revolução ignorou toda a angústia destes mortos-vivos que deambulam pelas ruas da vida. Atiraram-lhes umas migalhas, como aquelas que se atiram aos cães ou aos pombos, para que não nos incomodam. Ingrata geração. Ingrata Pátria que destruíste a fina flor da tua juventude!
O velho soldado estava lá. Bem vestido e fresco. Os clarins tocaram o silêncio. Eu vi-o e aos outros de mão no peito e a lágrima ao canto do olho. Hirtos como árvores. Sim! Porque eles são como as árvores. Morrem de pé.
Depois da cerimónia, guardou a boina castanha, depois de a beijar, no bolso do casaco. Falou com uns companheiros de mágoas africanas e distraidamente puxou a saudade do capim que se enrolava no fumo angustiado do tabaco.
A tarde era de sol. Uma longínqua brisa abraçava as folhas frondosas, e, nos ramos pendurava as memórias de cada madeirense, como lenços brancos de salgadas lágrimas, deixadas nas terras que nunca foram deles, mas que o regime chamava de nossas.
Eles partiram, levados por navios de serviço à pátria, qual herói, de pátria que não tem filhos.
- Sim, é verdade. A minha vida acabou no dia em que regressei. A revolução estava no auge! Nos, os últimos, éramos como os lenços. Descartáveis!
E a conversa continuou à sombra duma acácia que sombreia um banco de cimento, no meio da mata.
- Estes políticos, filhos da outra, nem tiveram consideração, nem se importam com os que lá ficaram. Parece que está página da História de Portugal é para esquecer. Lamentava-se outro.
A tarde continuou triste, apesar de dourada. Trinta anos depois um soldado regressava à terra. Em terra. O Telo podia, agora descansar, junto ao murmúrio do mar, ouvindo os calhaus rolarem acima e abaixo, nesse vai-vem aperfeiçoador de esfericidade.
- Foi preciso uma associação fazer o trabalho que é responsabilidade da Nação! Pátria cruel! Na realidade, continuamos em África. Negro destino o nosso!..- Dizia um de boina vermelha, sobre o lado, e uma lágrima descendo a face que não lhe foi possível conter.
- País que nega os seus heróis é país em fase moribunda. Basta ver o que decidem os governantes, as suspeitas em que dizem estar envolvidos. O antigo regime era podre, mas este?!...
- Não lhe fica atrás. Os governantes lembram-me o anzol. Têm boa lábia, mas escondem um perigo mortal. Esquecem o que prometem mais rapidamente que se tivessem mergulhado no Letes.
- Poderíamos chamar a este país de rio do esquecimento, encobrimento e muitos mentos! - Riu-se o velho soldado.
A chama da memória ardia sob a protecção do anjo. Os quatro companheiros dirigiram o olhar para o monumento, onde adejavam as bandeiras, e, hirtos como soldados, bateram continência aos símbolos da Pátria que os esqueceu. Depois, curvados sob o peso do esquecimento e da indiferença da sociedade, arrastaram os pés pelo verde da relva e mergulharam na angústia alpardinha.
Aquele mamulho do passado torna sempre presente o sol africano e as enormes picadas, bordejadas de renovada natureza e promessas jovens de heróis esquecidos.
Sob as enormes árvores africanas continuam a jazer heróis por celebrar!
Os mortos já estão em paz e comunhão com a terra, mas os que sobreviveram continuam em guerra consigo próprios.
Vivem o abandono, o pior de todas as guerras.

7 comentários:

  1. O homem da fotografia é o herói? É mesmo ele?

    ResponderEliminar
  2. o homem da foto é uma alma atormentada pela indiferença da cidade.
    Um homem que procura notícias dum mundo melhor!

    ResponderEliminar
  3. Nestas palavras também eu me vejo lá. Saudoso duma juventude passada nos melhores anos que continha. Nesta quadra natalícia notamos mais, ainda, o abandono a que fomos devotados. Cometemos o crime de defendermos a Pátria tal como nos ensinaram. Na realidade todos pensamos no amanhã que desejamos melhor e só a família e os nossos filhos nos levam ao descanço da noite.
    Bom Natal para todos quantos vivem o pior da guerra. - J. Azevedo

    ResponderEliminar
  4. Também estive lá,desde que regressei em 1974,a minha guerra diária tem sido esquecer a guerra,só que não há dia nenhum em que ela saia do meu pensamento,durante muitos e muitos anos eu não falava desses tempos com ninguem,pensava que não era normal não conseguir esquecer aquilo que vivi.
    Agradeço ao autor deste texto ,ainda mais por ser jovem,aquilo que escreve,acredite que me emocionei ao ler,mas por outro lado ajuda-me a pacificar os meus pensamentos.Bom Natal
    J.Fernandes

    ResponderEliminar
  5. Aos dois anónimos, obrigada pelo que fizeram pelo país (eu vivi em África, descansada, porque vocês lá estavam). Bom Natal.

    ResponderEliminar
  6. Eu não estive lá, mas nesses anos do início da década de 70 mantive uma correspondência regular com um grande amigo e fui recebendo muitos e muitos 'aerogramas' a transbordar de coisas aterradoras misturadas com as saudades...

    ResponderEliminar
  7. A Pátria não nos esqueceu.
    A Pátria não é o Estado. Esse, sim, em nome das promessas interesseiras, do esquecimento conveniente, da condição de privilégio dos que lá não foram e ou ignorância mesquinha, é quem está a cometer o crime de lesa/combatente.
    Interessam as cerimónias de comover os vivos, que, por seu lado possam , fechando os olhos, validar com o seu voto os actos do contínuo desprezo, abandono e humilhação a que nos votaram.
    Eu, estive lá.
    O Jordas toca na ferida. Parabéns pela dignidade.
    Bom Natal aos Vivos e Paz aos Mortos que nos Honram.
    Santos Oliveira

    ResponderEliminar