05/08/2009

PENSATIVAMENTE RECORDANDO

São vinte e uma horas. A tarde desprega-se em tons de cinzento no fundo ainda azul-dourado da tarde. Saio para o meu passeio de fim de dia. O ar está cálido e uma brisa estival languidamente se insinua nas tenras e lilases flores dos jacarandás. As acácias prenhes de cor parecem enamoradas dos passeios e dos jovens que, despreocupados, passeiam de mãos dadas. Estou indo para o Jasmineiro. O aroma das flores é fresco e sensual como um pôr-do-sol. Caminho distraído. Perdido de mim, e se calhar do mundo, mas olho e admiro o milagre da tarde, das flores, do aroma licoroso, das ervas crescendo nos lados escuros de alcatrão das ruas... Sim perdido de mim, mas atento ao mundo.
No fim do muro, revestido a cantaria de basalto, frente aos altaneiros mastros da RDP, despidos de bandeiras, mas tecidos de cordéis hasteantes dos estandartes, está um velho. Veste uma roupa castanha, camisa mais clara, e as sapatilhas de sempre. Está mais curvado, como que subjugado pelo milagre da noite ou pela solidão do mundo. Não tem o saco do costume, nem lhe pende dos das mãos qualquer objecto. Está só!
Move o pé direito num vaivém ritmado, mas desconexo. A perna cruzada mostra resignação e o seu olhar está distante. Longe daqui!
Perdido em outras noites, em outros lugares. Em outras gentes.
- Estou perdido em África.
Lá bem na picada.
Foi lá que fiquei!
O corpo está aqui,
mas nunca mais me encontrei!
Troteava estes versos, uma e outra vez, como que tentando reunir a alma e o corpo. Descruzou a perna, meteu as mãos ao bolso e de lá tirou um pequeno livro: "Olhos de Caçador" de António Brito. Os olhos humedeceram.
- Estive com ele. Era dos Paras. Eu era de cavalaria. Ele não esqueceu os camaradas! Ainda bem que alguém se lembra de nós. Lá de vez enquanto sai timidamente alguma coisa sobre aquele inferno, o nosso inferno. Depois da revolução, muitos de nós foram sepultados vivos na campa rasa do soldado desconhecido.
- Podia escrever os relatos daquilo que se recorda – Disse-lhe eu – talvez até fosse uma forma de se sentir melhor.
- A minha catarse é arrastar-me, até ao dia da minha morte, por estas ruas de ninguém, por estas tardes de solidão, esperando o encurtar dos dias. Não há remédio para a minha doença! O Dr. Cova é o único que pode dar conserto à minha angústia.
-Vá lá pense em escrever alguma coisa sobre esse tempo, só assim se poderá saber algumas verdades, ditas por quem as viveu!
- Vou pensar... Tenho alguns cadernos com cartas que nunca foram para o correio, poemas, crónicas, relatos... Quem sabe!...
Levantou-se e caminhou, rua acima, em direcção aos Ilhéus, em passos curtos e de mãos vazias.
Eu continuei o meu passeio, absorvendo o ar fresco da noite que me inundava de perfume as narinas.
Imaginava as noites africanas cheias de perigos e encantos, os sons da floresta e a angústia do desconhecido para onde o velho soldado caminhava na esperança de algum repouso.

3 comentários:

  1. Vamos ter um "velho" escritor? E crónicas sobre um passado em África? Sobre feridas não completamente curadas mas também sobre saudades de um continente mágico?

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  2. Também notei o ar mais curvado... ontem, devo ter passado pouco depois de ti, mas de carro. Abrandei, mas depois continuei. Sabes que já o vi, por estes dias, não com os jornais, mas, imagina, umas dezenas largas de cromos, cartas, e outros papelinhos desse tipo, pacientemente a ordená-los, tipo canasta ou paciência... Cada vez estou mais intrigada nele E na tua história ;) Welcome back :)

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  3. Já tinha saudades deste homem. E de ti.

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