19/07/2009

RECORDAÇÕES DE ÁFRICA


Era pelas sete da tarde daquele domingo, quente e húmido, de Julho. A brisa era morna e a sombra das velhas árvores desenhavam no chão, escaldantemente preto, esperanças do passado e angústias do futuro.
O Velho soldado estava sentado, ao lado do seu saco de supermercado, ao cimo de uma entrada de porta à Calçada da Caboqueira, no último dos três degrau, bem lavados e suaves, que dão acesso à porta de uma antiga casa, recentemente recuperada, com muito bom gosto. Está apoiado sobre o cotovelo direito, olhar perdido na distância do tempo vivido, encontrando no muro caiado da Pousada de Juventude, a juventude perdida em África, nas camas de capim, nos charcos imundos de paludismo duma guerra inglória, sempre perdida para os que lá ficaram e para os que regressaram. No saco posso ver o diário de hoje, um livro de Osho, e algumas revistas do passado. Algumas com anos.
São as recordações ou os tormentos que uma garrafa de vinho não fazem esquecer, que os olhares reprovadores de quem passa fazem descarnar em hemorragia exangue. Dessas, cujas dores são tão cruéis, que nem a carne consegue suster, mas a alma de um guerreiro ampara com o estoicismo de um perdido e descrente, mas homem.
É um homem que ali está, perdido na tarde quente de domingo, como um peregrino da vida, em busca de uma mão salvadora, um olhar de compreensão, um obrigado pelo sofrimento que foi coagido a sentir nas húmidas florestas de Angola, onde o cheiro se impregnou na pele, e nunca mais o libertou desse passado de noite e dor, de luz e trovão, de morte e sobrevivência.
Disse-me que à noite não consegue dormir, que como num pano de cinema, todas as imagens ganham vida e ele revive o que sempre quis esquecer.
Afirmou que para ele não houve psicólogo, ou apoio emocional, apenas o desprezo das revoluções, das multidões e o abandono da família que nunca teve, pois era órfão de pai e mãe.
- Não conheci nem pai nem mãe. Fui órfão em criança. Fui para Angola abençoado pela Pátria que me pedia sangue e lágrimas. Hoje sou um órfão social. Durmo em vãos de escada, em bancos de jardim, onde calha...
Há uma alma que me lava a roupa e me dá um prato de sopa, mas está tão idosa... Foi minha madrinha de guerra.
- Ter madrinha de guerra devia ser interessante?...
-Tinha as suas vantagens, permitia-me sair daquele mundo. Dos desgosto que era obrigado a dar a jovens como eu... Eu tinha que cumprir ordens... Mandar é uma carga pesada e difícil. Permitiu-me criar um mundo de esperança, para sobreviver ao mato e aos turras. Manteve a minha leitura e escrita activa…
Não queira saber aquilo o que foi. Um inferno…
-Mas quando regressou, não encontrou mulher, apoio?
- Como podia... criar um lar, dar felicidade a alguém?...
Duas grossas lágrimas sulcaram a face rugosa do soldado e estatelaram-se no cimento, numa mancha poligonal estrelada, que logo se evaporou. A dor e a recordação eram amaras como as águas paludais e a sede cortante do regresso ao presente.
O presente era um vazio mitigado pela leitura de Osho - OLivro da Criança.
Atrevi-me a perguntar-lhe o porque daquele livro.
-Hoje têm medo de falar às crianças do nosso passado africano, dos horrores que cometemos, dos horrores que sofremos. A sociedade parece querer apagar essa página da História.
As crianças precisam sabê-lo, para não caírem no mesmo logro.
As crianças precisam ser crianças... Hoje a sociedade adultiza-as. Vão para a escola demasiado cedo. Não lhes é permitido brincar, descobrir o mundo, não deixam expandir o poder de criação. Trabalham das oito às dezoito. Sim que aprender é um trabalho.
Estão matando as crianças... Eu sei o que digo! Eu sei o que vejo!
O meu sofrimento não me roubou a lucidez e a capacidade de análise!
Os carros começavam a passar mais amiúde e o sol estava mais brando, as sombras eram, agora uma mancha uniforme, que se atapetava sobre o asfalto. Arrumou uma revista, que estava debaixo do cotovelo de apoio. Levantou-se e desceu para o centro. As suas leituras passeavam naquela tarde de estio, pelas ruas desertas da cidade.
A água corria na ribeira, límpida e vagarosa, como os passos errantes do homem, mas não lavava, nem levava a angústia do soldado.


3 comentários:

  1. Jordas: fico curiosa, claro, e já sabes a razão ;) Verdade? Ficção? ok, eu não pergunto: leio apenas e gostei, novamente :) Vai escrevendo, se puderes, lá por onde andares e boas férias!

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  2. Gosto desta personagem. Tem alma. Não sei se existe de verdade, sei apenas que existe na verdade da tua escrita e que tem alma dentro.
    Boas férias, meu amigo. Descobre por aí outros soldados com outros livros e outras histórias por contar.

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  3. Este texto é comovente. Ao ler senti a dor deste soldado que vive só e angustiado com as recordações de um passado cheio de dor, doenças e morte.
    Jordas,é sempre bom visitar os teus blogues,pois neles encontramos textos narrativos e poéticos de qualidade. Parabéns uma vez mais. Boas Férias! Abraço, Nanda

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