25/06/2009

REENCONTRO

São oito e pouco da manhã. O sol espreguiça-se, dourando a fachada branca da Igreja do Colégio. Os santos dos seus nichos acordam, acariciados pelos poucos pombos que povoam a pachorrenta Praça do Município. Uma brisa ligeira penteia as folhas verdes das árvores viçosas de vida e cor. De quando em vez uma flor de fogo tomba sobre o chão de calçada portuguesa e logo é esmagada pela indiferença sonolenta dos passeantes.
É uma manhã de Junho. Quinta-feira. Os carros rolam molengamente, sem pressas e sem apitos enfurecidos, nos paralelepípedos de basalto, talhados, há muitos anos, pelos experientes canteiros da ilha. Estas ruas deveriam ser consideradas património da cidade e por isso conservadas. Não precisamos de mais áreas negras de alcatrão poluente...
Ao fundo, no lado direito da Praça está uma enorme árvore, colorida de belas flores. Vistosas e em cachopas de fogo, pendentes, como arrecadas, dos ramos fortes que se ligam a um enorme tronco, grosso, negro e esguio de meio a cima, que se eleva para o céu em sombra de verdura fresca, e se enterra na simplicidade duma caldeira minúscula, bem definida pela calçada que pavimenta a rua. Mas rodeada de outras plantas.
Debaixo daquela, na frescura alva dos pequenos arbustos , encosta-se um típico banco de jardim, pintado de verde escuro: Duas tábuas arredondadas nas pontas, assentes num cavalete de ferro forjado, também pintado de verde, mas onde são bem visíveis as nervuras que lhe dão graça.
No sino da Sé a badalada assinala as oito e trinta. Sentado no banco está um idoso, jornal bem aberto, não se lhe vê o rosto, mas àquela badalada, como se o papel fosse um leque, afasta-o e rodando o braço espreita os ponteiros do relógio. Reconheço aquele gesto.
Junto ao tronco da árvore, mas entre as plantinhas menores que preenchem a caldeira de brancura, está um saco de supermercado, cheios de diários e revistas, e um livro de capa azulada ou verde, na lateral.
O jornal que lê é o do dia. Está aberto nas páginas dos artigos de fundo.
O cabelo está bem penteado, a barba desfeita, camisa bem passada, calça limpa, mãos bem tratadas, mas os seus olhos continuam iguais: desiludidos e tristes, muito próximos das letras, como se aquelas fossem fugir do papel, mas muito ausentes do mundo. É um leitor esforçado e interessado no texto. Não liga a quem passa, nem ao homem da vassoura que espalha poeira, num arrastado rrrrchchchc, mas junta uma quantidade de flores iguais à farda que veste, em pequenos montes, que depois apanha com uma pá e atira no plástico preto dum saco.
Um cão aproximou-se e ele afagou-lhe o pêlo. O animal sorriu, pousando a cabeça no seu joelho. O homem murmurou-lhe algo de auspicioso, porque a cauda moveu-se de contente e logo uma pata forte se estendeu em direcção à mão do velho.
Segui o meu destino, descendo a Rua dos Ferreiros em direcção ao Bazar do Povo. Debaixo dum til, vendiam-se redondas e vermelhas cerejas, abrunhos matizados e aromáticos e umas perinhas pequeninas de S. João. Os damascos e os pêssegos aromatizavam o espaço de cor e aveludada penugem.
Era preciso despachar-me e pagar a água de rega da levada dos Piornais. Todos os anos os heréus contribuem para a manutenção daquele bem, e conservação do canal, fundamental para a agricultura.
O sol subira. O céu estava azul iluminado. As ruas eram, agora, um carreiro de formigas humanas, apressadas e apreçadas, indiferentes, mudas e muitas sem vontade de sorrir.
Eu estava feliz.
O Soldado Leitor continuava vivo e as suas leituras caminhavam pela cidade.

3 comentários:

  1. Tantas perguntas que tenho para fazer sobre este poste, mas nenhum tempo para as fazer :( mas ainda voltarei aqui a reler e a peguntar :)

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  2. Gosto deste soldado leitor que faz passear as leituras pelas ruas da cidade. Gosto do cheiro deste poste, da luz deste poste, das personagens que o enfeitam. Gostava de ter escrito algumas das imagens que aqui estão: as folhas penteadas pela brisa, a flor de fogo pisada pela indiferença dos transeuntes.
    Gosto deste silêncio que, aos poucos, é ocupado pela cidade que tem de ir trabalhar.

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  3. Jordas, eu ainda não percebi bem porque é que não publicas um livro. Acho que as pessoas que gostam de ler,iriam adorar os teus textos. Sabes, é que tu tens a capacidade de transmitir "coisas giras" através da tua escrita.Mas pronto, tu é que sabes. Abraço, Nanda

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