16/06/2009

O SOLDADO LEITOR


O vento sopra nas verdes folhas das acácias, um suave perfume azulado exala-se dos jacarandás, e da magnólia, ainda jovem, alvas flores se abrem em perfumado sorriso. No céu de Junho, uma nuvem desenha-se em quadros de Dali e Picasso, em figuras de Amadeu e Negreiros. Como uma aguarela esmaece e desaparece, deixando o céu azul. Observo, da varanda do meu apartamento, uma réstia de cidade e o mar até à Ponta do Garajau. Não há barcos no porto.
Saio. Vou fazer a minha caminhada diária, levo o cão atrelado, e, como sempre, vou para Leste. O tratuário da rua é largo e está bem tratado, os canteiros bem definidos, permitem a rega das plantas exóticas e das louráceas da ilha, poucas, ali vicejantes de verde. Nunca percebi esta mistura! Sempre pensei que deveríamos usar as nossas plantas nos arruamentos. Mas, enfim, não percebo nada de urbanismo.
Vou assobiando e olhando os botões das acácias que começam a ruborescer, entre as folhinhas mínimas dos ramos que construíram um chapéu sobre os passeantes.
Ao fundo da rua, num muro baixo, sentado e dobrado, para a frente, está um velho. Estou aproximando-me dele. Aos seus pés está um saco de supermercado cheio de jornais e um livro assenta sobre a pilha ou pira de papel. Não quis acreditar: Os Lusíadas, numa edição muito antiga de Francisco Bueno, penso que de 60 e poucos. Reconhecia-a pela capa. Havia uma edição igual daquele poema na estante dos livros de apoio da sala de estudo, quando andava no 9º ano. Lembro-me muito bem. Era encadernado, com uma capa pouco sólida e em tons de verde cinza. Era uma edição anotada que muito me serviu no exame de Português, porque eu era aluno externo, no Liceu do Funchal, quando o Dr. Alfredo Nóbrega me fez a oral.
O homem tinha um conjunto de cartas na mão e jogava ao jogo da Paciência.
O cão ia à minha frente e começou a cheirar a sapatilha do velho. Ao se aperceber da presença do animal acariciou o pêlo negro e fofo e meteu conversa:
­ ­– Tem um cão muito bonito! Ele gosta de passear?
– Sim, muito, logo que abro a porta é o primeiro a chegar ao elevador. E o senhor, gosta de ler?
– Sim, leio tudo…
Depois a fala tragou-se-lhe na garganta e o rosto iluminou-se. Não parecia tão velho. Deveria ter uns cinquenta e tal anos, já perto dos sessenta. Continuou:
­– Lia muito, no tempo da guerra, no Ultramar, era alferes… Hoje leio menos, perdi uma vista em África e vejo mal do outro…
A voz embargou-se-lhe novamente, e uma lágrima deslizou bilhardeira de dor no rosto cicatrizado do homem.
O cão puxava a trela. Despedi-me e continuei o passeio. Olhei para trás e vi o homem passar a manga da camisa pela cara e logo de seguida puxar uma carta.
O tempo arrefecia, e umas nuvens vindas de Norte corriam loucas sobre a cidade.
O homem continuou lá. Paciência era algo que não escasseava.
Dei a volta ao quarteirão, regressei pelo outro lado e o velho continuava no mesmo lugar, e o saco do supermercado imóvel, como um cão paciente, estava a seus pés.
Continuei a minha rotina, nos dias seguintes, mas nunca mais vi o homem naquele lugar. Não sei o que lhe aconteceu.
Só então compreendi que, na desgraça, um livro pode ser um bom amigo, sobretudo se ele nos trouxer a afectividade perdida da juventude!
O homem não me falou daquela obra, por medo se ser ridicularizado. Com certeza não queria queimar na pira social a única esperança que o mantinha vivo: acreditar na História da sua Pátria.
Afinal, no meio do esquecimento e indeferença sociais, só temos uma saída: Revisitamos sempre a grande Epopeia da nação ou pessoal e seguimos em frente.

5 comentários:

  1. Bonito, quando acabou ... queria mais,,,

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  2. Será que é só o passado que nos salva? E o futuro, onde fica?
    Sabes, ando a tentar recuperar esta noção de que os livros ainda podem ser portas de fuga... Gostei de te ler: Muito! como sempre!

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  3. Quando deres "Os Lusíadas" ou a "Mensagem" não te esqueças de falar dele aos teus alunos.

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  4. Também quero mais!
    (e sou testemumha que este senhor existe... Muitas vezes, fico a pensar naquela história de vida que 'acabou' acolá naquele muro baixo do prédio, rodeado de papeladas... Mas da próxima vou reparar melhor: Os Lusíadas? E vou conversar um pouco mais que o habitual 'boa tarde'. Depois, conto a conversa ao Jordas para ele nos contar daquela maneira que ele sabe tão bem ;)

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  5. É um caso estranhíssimo: 9 e tal da manhã, como quem chega ao seu trabalho, chega o senhor 'soldado leitor', camisa azul, limpa, muito bem passada a ferro. E senta-se no muro do costume com o seu saco de jornais. Escolhe um e começa a ler. Da próxima, falo-lhe mesmo ;)

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