10/06/2009

O Tanoeiro


O meu avô Domingos, era um homem alto, de feições austeras, olhar frontal, e de enormes entradas no cabelo, que lhe acentuavam a testa larga e lisa e prenunciavam calvície certa. Lembro-me dele, era eu criança, quando ele trabalhava debaixo do telheiro, feito de folhas de bidões espalmados, no fim do terreiro, onde estavam as mesas e os apetrechos de tanoeiro.
A sua arte de dobrar as aduelas de um barril era fenomenal: Juntando as várias ripas e aconchegando-as com dois ou três arcos, colocava-as de pé e dentro delas um monte de vides que incendiava e, apertando os diversos arcos moldava o barril com uma perícia de artista. Achava deveras impressionante como o fazia. Depois pegava nas tabuinhas que serviam de fundo ao recipiente e encaixava-as nas extremidades, aliviando a pressão dos arcos. As folgas entre as uniões eram vedadas com palha de bananeira e uma mistela de cinza amassada.
A sua actividade de tanoeiro crescia entre os meses de Verão que antecediam as vindimas. Nessa altura era ver os barris com aduelas partidas, os fundos estalados ou fendidos, serem substituídos por novos ou remendados, nas zona esvaídas. Era a ocasião para vermos a quantidade dos cristais vínicos secos e presos na madeira. Quando soltos exalavam um perfume baquiano de excelência. Aquelas virtudes guardadas durante anos eram, muitas vezes, aproveitadas para provocar o envelhecimento de outros cascos mais recentes ou mesmo de vinhos mais fracos.
Mas além de tanoeiro o homem sabia de carpintaria e de marcenaria. Fazia portas, compunha janelas, rectificava soalhos, mesas e uma infinidade de objectos. Mas aquilo que mais admirava nele era a precisão com que, montado no estaleiro de serração, conduzia a enorme serra ao longo do tronco grosso dos pinheiros, carvalhos ou castanheiros e comandava ou outros dois homens que, por baixo davam maior força à serra.
O homem fumava uns cigarros que vinham numa carteira com figuras escuras sobre fundo alaranjado, mas era muito comedido.
Lembro-me certa vez que me deu com uma vide nas canelas, deveria ter uns três anos. Estava eu saltando sobre um monte de vides que ficava por detrás da loja da ferramenta. Havia avisado para ficar quieto, para não pôr as vides em moinha, mas eu fiz ouvidos de surdo. Ele apareceu na esquina de vergasta na mão e zás. Pegou-me pelo braço e sentou-me no muro e disse-me: Fica quieto aí e aprende alguma coisa. Depois voltou ao trabalho, assobiando uma canção que não recordo. Continuou aplainando as madeiras, apertando os arcos. Depois a minha avó apareceu à porta da cozinha, que ficava contígua à oficina, trazia na mão uma xícara de café escuro e um pedaço de pão caseiro. Era a hora do jantar. Para mim trazia uma fatia de pão, feito por ela, bem guarnecida de manteiga amarelinha.
Recordo também o dia em que foi cortar um castanheiro à beira dum ribeiro, na fazenda do meu avô paterno. O dia estava lindo, céu azul e o sol aquecia, deveriam ser umas nove ou dez horas. Era Primavera, pois na anoneira ao fundo, sobre a parede estava um ninho de melro-preto. Aproximou-se do castanheiro, pousou a mão grande e ossuda na casca cinzenta, olhou de alto abaixo, olhou em redor, reolhou a árvore e disse: ele tem de cair para aquele lado. Dá-se um corte assim, depois basta um pouco de força e ele cai entre aquelas duas pernadas e não estraga nada. Feitas as contas a árvore caiu onde havia dito.
Tempos depois ele partiu para a terra do pau vermelho. O meu tio mais novo estava a chegar aos quinze anos e se ficasse pela ilha de certeza iria para a guerra no Ultramar.
Dizem os meus tios que continuou a exercer a actividade no Brasil.
Mas nunca mais ouviu o seu assobio ritmado com o malho a bater no ponção que apertava os arcos.
Tinha um alcunha: O RicoXino. Nunca percebi porquê, apesar de ter perguntado. Não me pareceu que os seus olhos tivessem algo de chino, mas parece que herdei esse rasgo de olhar.

4 comentários:

  1. Jordas: deixas-me sem palavras, novamente... Agora não tenho dúvidas: tens de começar a organizar a tua obra como fez o Torga: aquela colecção interminável de 'livrinhos diários'! A sério! Não há mais para dizer ;)

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  2. 'interminável', isto é, que ficam connosco para sempre, mais isto que eu queria dizer...

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  3. Fico sempre impresionada com o rigor das tuas memórias e com o encanto com que as transmites.
    Cada vez percebo melhor a tua ligação à terra e admiro a facilidade com que conjugas o respeito pelas tradições e a crença nas coisas novas.

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  4. Mais uma vez, Jordas. Como eu gosto de te ler!

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