15/06/2009

Coração de Andorinha



Eram as tardes quentes do final de Junho, quando as lamuriosas canções das ceifeiras ecoavam pelas costeiras, loiras de espigas em oração e ao longe o búzio do levadeiro anunciava o giro da noite, que as andorinhas faziam os seus voos rasantes por sobre as searas, enquanto os mais novos recolhiam por entre os tremoceiros, ainda verdes, as espiguinhas enfezadas, ou roubavam uma vagem de favas, que o Estio não endurecera, ou trincavam aquela leguminosa, doce, mas de vagem muito esquisita, os chícharos, a que nós por economia dizíamos de chichos.
A canção tinha melopeia mourisca e recordo ainda uma das quadras, cantadas ao desafio entre as diversas ceifeiras, que, em magotes, se esforçavam por recolher à foiçada o trigo que amontoavam em marenhos, cingidos por um baraço de trigos, destinados à palha ou ajeitavam sobre o braço cada gavela arrancada por mãos calejadas e experientes , reunindo em cacho as espigas da gramínea destinado ao restolho para abafar os palheiros e algumas casa, que ainda as havia de palha. Aqui fica ela. Tenho a certeza que a minha mãe sabe muitas mais, pois era uma bela ave canora:

“Vamos apanhar o trigo
Do trigo se faz o pão
Sofrimento e o calor
Nos traz o dia de Verão.”

Numa das costeiras andava o grupo familiar do João da Carolina. O velho era um entendido em cestaria, nenhum vime tinha segredo e era um às a fazer cestos de vindima, ou de braço, tampas, cestinhos, gigas de medida... Mas o que mais admirava nele era a capacidade de fazer piões. Pegava em qualquer ramo de árvore e talhava-o com uma precisão incrível. A sua podoa mondadeira era afiada e certeira em cada lasca que arrancava à madeira, depois, aparava tudo muito bem com uma navalha bem afiada e, em pouco mais de uma hora, o objecto estava feito. Tirava a fieira do bolso e o pião rodava no chão pianinho e sonolento.
Era um homem resistente que se deslocava apoiado em dois bordões. Sabedor do tempo e do momento mais precioso para se fazer as colheitas e as plantações: “A rama está deitando muito leite, a maré está subir, não serve para se plantar, talvez ao fim da tarde esteja bom". Em cada plantação, depois de arrumar bem a terra do poio e dos regos de serviço à rega, que se assemelhavam a um jardim acabado de tratar, ficava algum tempo, de chapéu na mão, rezando as suas orações. Dizia que rezava a S. Joaquim. Mas fazia-o sempre que realizava qualquer tarefa agrícola.
Era uma dessas tarde de canícula, mas já bem perto do anoitecer, pelo São Pedro, os miúdos tinha juntado a estiva, os troços de couve e o Agostinho tinha trazido um molho de louro que tinha ido cortar às rochas e a pequenada estava junta, na ponta do poio redondo da Cova, pois as tarefas daquele dia tinham sido dados por terminadas, à espera que as fogueiras de S. Pedro começassem, quando vemos o João da Carolina fazer um troço de couve voar sobre as nossas cabeças e derrubar uma andorinha que, atordoada, caiu. Rapidamente apanhou-a e chamou a pequenada, que as conhecia, mas nunca estivera com uma na mão e disse:
-Deveis ser como as andorinhas, um coração que não se cansa de voar, o vosso não se deve cansar de fazer o bem!
Depois soltou a ave que se juntou às companheiras e foram caçar mosquitos e outros insectos. Sacou do fundo bolso da frente das calças do cote o acendedor prateado de algodão ensopado em benzina e ateou fogo ao mato que se transformou em enorme fogueira.
O louro estalava e as labaredas subiam altas para o céu.
Os mais afoitos saltam à fogueira num ritual de purificação, passando, aos pilotes, como cabritos, por entre as línguas de fogo e aterram, na terra quente e perfumada, da memória.

1 comentário:

  1. Mais uma vez, Jordas, a qualidade das palavras... Lembrei-me de Soeiro, de Régio, do tempo em que éramos verdadeiramente felizes e não sabíamos...

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