28/05/2009

Camulhada de Chicharros



Eram seis da manhã. Domingo.
O Padre Gabriel, do altar-mor, junto ao ambão de madeira começa:
- In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.
E seis marteladas ecoam pela torre sineira da igreja de Santa Cruz.
Está iniciada a missa daquele domingo.
O padre Gabriel, era um homem alto, com uma voz potente, não precisava de microfone. As suas homilias eram curtas, mas incisivas, muitas vezes as suas palavras pareciam vergastadas. Mas o povo atremava-as muito bem. O Manel do Peniche dizia muitas vezes:"O Sr. vigário, estepilha, hoje disse das boas, aqueles finórios da vila ficaram com as orelhas a arder...
Na verdade aquele padre austero era um homem muito sóbrio e muito inteligente.
Naquele domingo, eu estava particularmente impaciente. Na tarde do sábado, o meu pai, depois de ter chegado do trabalho, vindo do Funchal, pelas 15 horas, no horário do Valente, fora ao Cascalho cortar os vimes, - lembro-me que era em finais de Abril - e eu acompanhei-o, deveria ter uns cinco anos. Ajuntei do chão os vimes pequeninos e arrumei-os num molhinho. Aquele material seria entregue ao Sr.Jóia, um vendedor de peixe na Praça de Santa Cruz, que fazia sociedade com o Sr. Luís.
Eu estava impaciente para que a missa acabasse. Tomaria um cafezito no Matos e depois iria ver os barcos vararem. De seguida ouviria a arrematação do peixe na lota, com o contar do preço de 100 para trás. O leiloeiro, o Sr. Tristão era um ás a contar. Livra! Até parecia um carro em marcha à ré. - Shut- ouvia-se e alguém arrematara aquele lote. Seguia-se outro e outro, até que tudo estivesse vendido.
Naquele domingo, parecia de propósito, o padre começara uma novena com ladainha. A missa ia demorar... E eu impaciente...
Por fim acabou o ofício sagrado, eu saí, fui ter com o meu avô, abalamos para a lota. O Sr. Jóia estava arrematando um lote variado de peixe: Congros, algumas espadas brancas, e coelhos, depois arrematou chicharros e cavalas. O peixe era colocado numa padiola e levado para a banca do mercado.
Aquele peixe cheirava a fresco.
Depois de ter ido tomar o cafezito da manhã. Aquele tinha um cheiro e sabor muito especial. Às vezes o empregado colocava um pouco de anis . Meu Deus como era bom e aromática aquela bebida.
Mas voltemos à Praça, que agora estava cheia de pessoas que compravam fruta ou ficavam nos talhos olhando as carnes frescas, ou à porta ouvindo a lábia vendedeira do Volta à Ilha. Eu, porém, só me interessava a bancada sul. Aproximei-me e perguntei ao Sr. Jóia se tinha vimes para enfiar os chicharrinhos e as cavalas em camulhadas. Ele iluminou os olhos e disse para lhe dar os vimes, que lhe fariam muito jeito. Estendi-lhe o molhinho, que ele pegou e colocou debaixo da bancada. Depois, pegando num, começou a enfiar chicharinhos nele, para aí uns vinte ou trinta. Amarrou um pauzinho no final do vime e estendeu-mo para eu levar. Era a paga. O meu avô, entretanto, comprara um congro, grosso, como uma perna. Ele gostava imenso daquele peixe.
Saímos e regressamos a casa. Era preciso tratar das vacas, das cabras, dos porcos, das galinhas e dos coelhos. À tarde, o magote de garotos, de pata rapada, iria para o poço das Eiras brincar à bola, o local era uma antiga cratera cavada no saibro, que servira de reservatório da água de rega da Levada da Serra. Os jogos do tipo bota-fora iam até o dia ficar pardo, ou a voz da mãe chamar.
Durante dois ou três anos continuei levando os viminhos ao Sr. Jóia, mas depois chegaram os plásticos e o mercado perdeu muito do seu pitoresco e também o cheiro fresco do peixe pescado em cada noite, até o cheiro do café parece artificial e o cheiro doce de anis evaporou-se na voragem do progresso.

4 comentários:

  1. Jordas: o "teu" romance vai passar-se em Santa Cruz ;) Está decidido! ;) E, entretanto, aprendi mais uma palavra madeirense ;) Eu sou madeirense, tinha obrigação de saber : 'atremar'. No Priberam, diz mesmo - "Mad. Prestar ouvidos; dar atenção".

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  2. Desculpa... Seis da manhã??? Domingo??? Já a ouvir o Sr. Padre???

    Vi o título num dos outros blogues e pensei: deve ser mais uma história com personagens cheias de vida, porque viveram.
    Não me enganei.

    Ah! claro que não sabia o que era uma "camulhada".
    Sabes de onde vem o termo? Acho piada a esse percurso de marcha atrás na língua.

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  3. Jortas, não percas estas coisas. São imagens que guardam o tempo, guardam as pessoas, guardam as palavras que fizeram a nossa vida. E tu fá-las regressar com a doçura de um poeta que vai cronicando a saudade que a vida lhe ofereceu.

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  4. Não te sabia tão madrugador já desde criança,agora poeta e escritor que nos toca e nos faz relembrar as nossas memórias de infância, mesmo através das tuas,lá disso já tinha a certeza.

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